quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Viagens na Minha Terra

Seja a Ilíada ou a Peregrinação, Os Lusíadas ou Lazarillo, Dom Quixote ou Robinson, em todos os casos a viagem, previamente programada ou desenrolando-se como uma deambulação ao sabor do acaso, possui um traço de sentido comum: é um trajecto de experiência activa, de aprendizagem, de conhecimento, de estranheza; o relato da viagem é, por natureza, o lugar do desvendamento e da revelação, não exactamente com o sentido de relato de acontecimentos mais ou menos fictícios e impossíveis, como se praticava no século XVIII, mas uma procura da realidade viva, na variedade dos seus matizes e das suas manifestações naturais, numa atitude de recuperação da ideia de viagem útil do século XVI. (...)

– a viagem realiza-se na sua terra, não como fuga mas como intromissão; o projecto programado da visita, no presente, também contém o propósito da visita ao passado conservado na memória dos monumentos; e, ao mesmo tempo, torna-se o lugar útil da reportagem e da reflexão acerca das realidades do mundo concreto regional, alargada, por sinédoque, às realidades na sua dimensão geral.

(...) a atitude pedagógica que, numa viagem ao passado, recupera acontecimentos exemplares de espírito nacionalista, abre-se agora a uma viagem cuja dinâmica assenta em duas coordenadas:

– movimento sobre o espaço, fundando a acção e, ao mesmo tempo, dando lugar à atitude especulativa e crítica no presente;

– movimento crítico, deambulando entre o presente e o passado, fazendo a sua arqueologia e avaliando os índices de progresso, de paragem ou de recuo; viagem que, por demais, não «quer» jogar com a ficção; no texto são abundantes os operadores de veracidade do conteúdo da reflexão e de crítica e de delineamento geográfico; em todos os casos os referentes históricos põem-se como evidentes.

Formalmente, a dominância da temporalidade de presente e o uso generalizado da 1ª pessoa verbal (...) põem frente a frente um narrador relator e o seu auditor, numa comunicação que não pode deixar de se fazer no registo oralizante, no decurso desta viagem em que ambos participam. E eles deverão necessariamente ocupar o tempo da viagem; estando ausente um plano prévio de assuntos, domina efectivamente o relato e a reflexão generalizante ao sabor do imprevisto, do acaso e das circunstâncias, num processo de (re)conhecimento que toma as coisas «reais» como ponto de partida e se deixa guiar por elas. Deste modo, a viagem realiza o princípio romântico de aproximação da realidade cuja espontaneidade não pode ser traída, sob pena de a trair como verdade: se a sensibilidade permite que o romântico veja no real o que os outros não vêem, se a imaginação lhe permite dizer o real como os outros não são capazes, a sinceridade impede-os de o representar como falso.

Estes preceitos românticos, que Garrett refere com frequência segundo perspectivas diferentes, surgem pela primeira vez no capítulo III a propósito da estalagem da Azambuja. Famosa, porém, é a passagem do capítulo V em que ele, perplexo e decepcionado com o pinhal de Azambuja, cujo estado lamentável não lhe oferece condições verdadeiras para um exercício romântico, se decide pela revelação das técnicas dos autores românticos; esta atitude de denúncia parece um generoso gesto de autocrítica:

– denúncia do convencionalismo mecânico, inimigo da realidade natural e dos conteúdos vivos; com a agravante de a cópia de modelos estrangeiros não ter em conta o espírito nacional;

– acusação a si próprio, afinal; também ele autor romântico: a história de Joaninha, no próprio texto das Viagens, não se afasta excessivamente do modelo censurado; como se a sua sinceridade o enredasse nas malhas da sua crítica.

Mas não; aquilo que Garrett diz não o envolve como criticado (apesar do «nós» que o inclui, aparentemente) porque a estrutura do texto o nega. O sentido de fidelidade ao real, que o relato exprime desde o 1º capítulo do livro, com as constantes referências a lugares e a factos objectivamente identificáveis, reforça-se intensamente no capítulo VII com as referências ao Alfageme de Santarém, livro que também se pode identificar na realidade cultural.

É este crédito de veracidade que determina que a casa do Vale de Santarém com a sua janela, rodeada de árvores e de rouxinóis, seja também uma realidade concreta que os olhos de Garrett vêem, do mesmo modo que viram o Terreiro do Paço ou Alhandra; e, posto que o companheiro que o acompanha e assegura o testemunho da história de Joaninha, esta, apesar do carácter romântico, é diferente das outras: é «verdadeira» e tem uma existência independente de Garrett, está lá à espera de ser contada.

Alberto Carvalho, Introdução às «Viagens na Minha Terra» de Almeida Garrett

Nenhum comentário: