quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Antonio Botto - perfil literário

António Tomás Botto nasceu em Concavada (Abrantes), em 1897. Amigo de Fernando Pessoa, colaborou em várias revistas de vanguarda, como a Athena, A Águia, a Contemporânea, a Presença, etc. Embora inveteradamente boémio, chegou a alto funcionário em Angola (África), na qualidade de Chefe da Repartição Política e Civil do Zaire. Vindo para o Brasil, entrou a viver uma vida desregrada e anárquica. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1959.
Escreveu poesia e contos. No primeiro caso, temos: Trovas (1917), Cantigas da Saudade (1918), Motivos de Beleza (1923), Curiosidades Estéticas (1924), Pequenas Esculturas (1925), Olimpíadas (1927), Dandismo (1928), Ciúme (1934), Baionetas da Morte (1936), A vida que te dei (1938), Sonetos (1938), - reunidos no volume As Canções de António Botto (1941, primeiro volume das Obras Completas), ódio e Amor (1947), etc. Contos: Os Contos de António Botto, para crianças e adultos (1942), etc.

A poesia de António Botto pende sempre entre dois pólos líricos: de um lado, coloca-se um erotismo exacerbado até o máximo possível, graças às febres duma incrível imaginação e duma privilegiada sensibilidade, e por isso mesmo invertendo o sinal do apelo físico: em lugar de dirigir-se a uma mulher, dirige-se a um adolescente. O tom é apolíneo, clássico, paganizante, em que se cultua a beleza masculina por seu equilíbrio de formas e a harmonia das linhas fundamentais. Do outro lado, uma poesia aparentemente antagónica, dado o seu carácter socialmente "realista": o poeta põe-se a retratar o baixo-mundo lisboeta onde impera o "fado", canção de escorraçados. Nessa poesia voltada para o quotidiano de Lisboa perpassa um eco longínquo de Cesário Verde. No movimento pendular - de carácter feminino-masculino -, o "outro" do poeta é já mulher, donzela ou fadista, como a compensar a tendência oposta: "Anda um ai na minha vida / Que me lembra a cada passo / A distância que separa / O que eu digo do que eu faço".

Os contos parecem testemunhar uma espécie de paisagem moral sobre a qual balançam e se compensam mutuamente as duas tendências marcantes do temperamento de António Botto.
Ambiguamente escritos para crianças e adultos, pois servem a todos com seu intuito pedagógico, os contos tem qualidades e defeitos resultantes desse mesmo carácter moralizante: assumindo atitudes à La Fontaine e à Esopo, o contista cometeu erros de base que por pouco não anulam completamente o sentido da obra toda. Noutros termos: procurando manter-se equidistante entre falar às crianças e aos adultos, algumas vezes o narrador se derrama piegasmente, ou se torna artificial quando pretende inserir notas de ingenuidade na moral com que coroa as narrativas. Com isso, parece comunicar-se apenas com o público infantil, pois para os adultos não satisfaz o conteúdo ético das conclusões. E mesmo para crianças, havia que ponderar a ocasional ausência de moral ou a sua impropriedade. Sempre, contudo, temos um prosador de primeira água, dotado de transparência, fulgor, simplicidade e variedade. A tais dotes soma-se o pendor inato para a poesia: é justamente a prosa poética, que adquire por vezes um tom de apólogo, ou de linguagem oracular, o superior mérito dos Contos, que se aparentam a Os Meus Amores, de Trindade Coelho, sobretudo pela esvoaçante fantasia que lhes serve de lastro, expressão de crença no mundo dos sonhos ou duma ânsia de fuga para atmosferas de beleza exclusivamente imaginativa.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

A Lírica Anteriana

Antero, através da sua literatura:

• Exprime a revolta e o inconformismo;
• Reflecte profundamente sobre o mundo e sobre a sociedade;
• Reflecte para agir, daí o seu carácter forte de líder, que o transformou no mestre e mentor, inspirador e símbolo da Geração de 70;
• A poesia é a voz da revolução que visa a justiça, o amor e a liberdade;
• Podemos encontrar preocupações sociais, uma profunda reflexão filosófica e uma intenção poética;
• Influenciou profundamente a geração estudantil coimbrã da segunda metade do século XIX.



O Terceiro Romantismo

Assume as seguintes características:

• Retoma os grandes temas do Primeiro Romantismo;
• Critica abertamente o segundo Romantismo;
• Orienta-se por um Romantismo filosófico
• Assume preocupações humanistas e universalistas;
• Busca, de forma racional, o ideal transcendente.



As duas linhas-força da poesia anteriana:

- A interrogação horizontal Eu/Mundo – a preocupação com o mundo, procurando conhece-lo, interpreta-lo, compreende-lo; a busca da justiça, do amor, da verdade, da fraternidade.

- A interrogação vertical Eu/Deus – a preocupação com Deus, procurando conhece-lo, interpreta-lo, compreende-lo, de forma racional.



Quatro linhas temáticas da evolução poética anteriana:

- A Expressão do amor: o amor espiritual (o amor espiritual, à maneira de Petrarca, sem a sensualidade lírica de Garrett; a mulher é um ser adorável, mas é uma “visão”; o idealismo platónico, o devaneio, a evasão romântica)

- As preocupações sociais, as ideias revolucionárias (desejo profundo de construir um mundo novo; o homem procura novos caminhos em direcção aos ideais a atingir; a ânsia de liberdade; a importância da poesia e a função do poeta: divulgar e combater, pois a Poesia é a voz da Revolução que visa a Justiça, o Amor e a Liberdade; poesia é renovação; a Razão clama pela fraternidade e solidariedade; o Amor é fraternidade; a Justiça exige igualdade, ao tornar a razão irmã do amor e da justiça, há uma preocupação em harmonizar conceitos que nem sempre são fáceis, pois o sentimentalismo, por vezes, entra em conflito com as reflexões da consciência. A razão deve permitir ao homem criar a harmonia e levá-lo à Liberdade, só conseguidas pelo Amor e pela Justiça. Em nome da Razão, o Homem tem travado uma luta ao longo dos séculos; a Razão contribui para a harmonia do universo).

- O pessimismo e a evasão (a busca da evasão através do sonho; incapacidade de adaptação ao real; as conotações positivas associadas ao sonho; eleva o espírito, atenua o sofrimento; expressão de um ideal religioso.)

- A metafísica, Deus e a Morte (o poeta busca, de forma irracional, o ideal transcendente; a dificuldade de conciliação entre o artista, o fidalgo e o filósofo com a plebe operária; o abandono, o descanso merecido após tantas lutas; a resignação após o desencanto.)


A Ideia

A Ideia representa o princípio intelectivo, divino, eterno e inalterável. A Ideia é luz; a luz do pensamento, da verdade, da justiça, da Razão.

A Nova Ideia é derivada daquele princípio mas desceu aos homens e, por isso, tornou-se real; por isso ela é, muitas vezes, fogo, o fogo da revolução ( a interpretação do ideal pelos homens).

As lutas que muitas vezes parecem torpes e inúteis, são necessárias, porque embora o pensamento não seja fogo mas luz, ele só pode visualizar-se plenamente na Terra, entre os homens, através de meios por vezes pouco pacíficos, sendo assim a revolução algo que se relaciona com guerra e até violência, mas proveniente de uma inteligência superior.

Antero de Quental, o mentor da "Geração de 70"

A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais

Datado de Dezembro de 1865 e elaborado por Antero de Quental, constitui mais um dos documentos determinantes da Questão Coimbrã, tendo surgido como réplica ao folheto "Bom Senso e Bom Gosto, folhetim a propósito da carta...", de Pinheiro Chagas, que acorreu em defesa de Castilho. Antero começa por demarcar-se dos que o apoiaram em textos anteriores apenas para a satisfação de ódios pessoais, afirmando não pertencer "a nenhuma escola além da escola do pensamento e da franqueza". Em seguida, proclama novamente a independência artística do poeta, em nome da "liberdade", do "culto da verdade", da "dignidade do pensamento", e repudia uma vez mais "as literaturas oficiais, governamentais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo". Defende, por oposição, a literatura que "se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espíritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o berço onde se há-de receber esse misterioso filho do tempo - o futuro."

A obra de Antero de Quental

Raios da Extinta Luz e Primaveras Românticas

Os temas destes versos na juventude de Antero são um misto de erotismo romântico de ideias pseudo-filosóficas então em voga: Niilismo, religiosidade cósmica, satanismo, pampsiquismo. As poesias Juvenilia apresentam-se com uma característica que as distingue de outra que Antero escreveu mais tarde: a insistência nos temas amorosos.
Ele vê a mulher como um anjo e o amor que lhe dedica é puro, sagrado, espiritual, isto é, o amor platonizante petrarquista. Por outro lado, em algumas composições, o amor de Antero é um abandono após o cansaço, um atirar-se semimorto para os braços da amada, ficando lá descontraído e calmo, como uma criança a dormir no colo da mãe. Anjo, mãe, criança pequenina: foi assim que o poeta viu a mulher.

Odes Modernas - um livro que é a "voz da revolução" Antero insurgiu-se abertamente contra a poesia romântica. Ao escrever as Odes Modernas, pôs de parte os subjectivismos românticos e começou a olhar e palpar as realidades sociais que o cercavam. A obra oferece-nos uma interpretação evolutiva da história, faz considerações metafísicas acerca do homem e do Mundo, não ocultando uma aspiração de transformações sociais. Por outro lado, inspirou-se em duas fontes doutrinárias muito em voga na época: o evolucionismo idealista de Hegel e o humanitarismo democrático de alguns autores franceses, sobretudo Proudhon.
O livro abre com o poema Panteísmo, que é uma mistura de pampsiquismo e de idealimismo Hegeliano. Além de Hegel, devem ter influenciado Antero nesta poesia: Vítor Hugo, Michelet e Nerval.
Panteísmo insurge-se contra o Absoluto transcendente em rebate o cristianismo afectivo dos românticos.

No poema A História há uma visão pessimista do passado (ódios, vinganças, desgraças, misérias). Os males do passado evitar-se-ão no presente e no futuro desde que se faça guerra aos tiranos, aos reis sem fé e aos deuses enganosos e se preste culto ao Amor e à Liberdade. Então, numa civilização assente sobre a rocha da Igualdade, reinará o Amor de Irmãos e haverá a verdadeira paz.
Na poesia No Tempo volta a prognosticar o triunfo da voz do povo que fará evolucionar a história para a Igualdade e a Justiça. Ao mesmo tempo, num ciclo de sonetos, Antero tenta a explicação do Mundo pelo Absoluto imanente. Conclui-se do soneto que um mundo ordenado tal qual o percebe só se pode entender omo expressão, manifestação da Ideia, a qual, em contínua evolução se consciencializa no Homem e no Estado.
Na poesia Et Coelum Et Virtus, refere-se a um Deus moribundo que desaparece para dar lugar ao Deus imanente da consciência.
No poema Pater insurge-se contra os sacerdotes que erradamente julgam ter na mão o monopólio da Terra e do Céu. Verdadeiros padres são para ele o mar, o firmamento, o vento, o cedro, a natureza, as mães, os poetas, os proscritos, os heróis, isto é, uma mistura confusa de mundo inanimado e de mundo humano.
No poema Tentanda via Antero esconde uma certa melancolia ante o fatal desaparecimento das coisas que a evolução desgasta, que o ímpeto revolucionário há-de fazer ruir. Evolução Ideológica Educado no catolicismo, viu Antero a sua crença profundamente abalada nos primeiros anos da vida universitária.

"Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por todos da minha geração".
Carta autobiográfica de 14 de Maio de 1887.

A partir dessa incerteza e dúvida, o poeta começou a sentir na alma uma aspiração pelo Absoluto, que foi a grande obsessão da sua vida. Com pouco mais de 18 anos converteu-se de vez ao «Germanismo», começando a encher grande parte da sua produção poética com lucubrações metafísicas radicadas no evolucionismo idealista de Hegel. Segundo o Idealismo as coisas sá se entendem como manifestações de Ideia, que nelas se vai determinando até tomar consciência de si. A única realidade inteligível é então a Ideia, da qual o Mundo é produto. Hegel ensina que a Ideia é movida por uma necessidade intrínseca para a sua determinação e manifestação. Mas ao determinar-se, cada manifestação da Ideia (tese) esbarra-se necessariamente na sua contrária (antítese) e logo se transforma numa nova (síntese). Mas de esta forma deixava-lhe me aberto o problema da finalidade do homem na Terra. Num soneto pergunta Antero aos Deuses: "para que nos criastes?" Deparamos então com Antero à procura do sentido prático da vida através de um socialismo utópico . Antero trabalhou afincadamente pela implantação de uma ordem nova na sociedade portuguesa. Ele acreditava que o bem estar social devia provir da evolução pacífica, baseada na moralidade, na instrução e na consequente autopromação da classe trabalhadora. Por outro lado, a morte de pessoas a quem muito queria, a doença e outras contrariedades inundaram-lhe a alma de pessimismo. Antero chegou ao conhecimento de que o Universo é um sofrimento sem finalidade e que tudo caminha invariavelmente para o nada. Tudo menos a Consciência, que se deve esforçar para atingir o Nirvana, onde há o repouso completo. Pensamentos do poeta Antero viu a burguesia triunfante de 1834 degenerar num capitalismo de especulação que nada produzia. Retomando a doutrina de Proudhon apela em alguns sonetos Antero para a Justiça; o Pensamento, a Ideia, que será luz do mundo; a Revolta e A Luta, até tudo estar no seu lugar; o Trabalho, de que alguma coisa ficará; o Cristo, avô da plebe; a Liberdade, sob o império da razão. Na sua fase pessimista, os sonetos estão repassados de emoção e contruídos de imagens: vê-se a dor em todo o lado e estamos continuamente a ouvir que é preferível o "não ser" ao "ser como se é". Sentem-se nestas poesias influências de Hartmann e do budismo. O pessimismo levou Antero a evadir-se, a fugir sempre para mais além. Essa região onde procura refugiar-se, aparece como um mundo indefinido, longínquo e vago; uma acção material, absorvente e enérgica; o sono no colo da mãe; o desprendimento do sensível; a aspiração a um Deus clemente, que o leve para o céu. A morte é considerada nos seus sonetos sob variados aspectos: liberdade, fim de todos os sofrimentos, irmã do Amor e da Verdade, consoladora das tribulações, berço onde se pode pode dormir, paz santa e inefável. E, em última análise, o ingresso no Nirvana, no "não ser". Antero fala de um Deus transcendente, no qual não acredita; num Deus que anima tudo, mas que é inconsciente nos deuses invenção do homem. Na metafísica de Antero devemos ver um primeiro esforço para explicar o mundo sem o Deus pessoal dos cristãos. Com ela Antero pretende ter encontrado a razão do Universo na Ideia. A ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, só se revela aos homens e às nações no céu incorruptível da Consciência ! Antero sente lá dentro uma voz misteriosa que lhe afirma: a existencia do Bem, da glória do amor, o Amor puro e sempiterno onde estão mergulhados todos os que amou. No fim de tantos desenganos e dores, o poeta descobriu num lampejo o Amor. Na Carta Autobiográfica, confessa o poeta com não oculta satisfação: " No psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares.".


Retrato de Antero de Quental (Óleo de Domingos Rebelo)

Inserção Histórica

A Inserção Histórica DO LIBERALISMO À REPUBLICA As novas ideias políticas dos filósofos franceses do séc. XVIII começam a entrar em Portugal no tempo do Marquês de Pombal. A censura, a polícia e a Inquisição não conseguem travar o aumento do número de «jacobinos» e dos «afrancesados», entre os quais figuram nobres e, sobretudo, homens de letras. A luta da Inglaterra contra a França revolucionária envolve-nos na campanha do Rossilhão e obriga-nos a não acatar o Bloqueio Continental, decretado por Napoleão, sendo o nosso país invadido pelos exércitos franceses (1808-1810). Não conseguem, porém, nem prender a família real, que embarcara para o Brasil, nem subjugar a Nação, que se levanta em armas e, ajudada pelo exército inglês, vence os invasores em Roliça, Vimeiro, Porto, Buçaco, Linhas de Torres, e os obriga a retirar. As invasões francesas deixam o país arruinado e ocupado pelo exército inglês. O descontentamento alastra, reforçado pela propaganda das ideias liberais. Após a malograda conspiração de 1817, triunfa a Revolução de 1820, organizada no Porto, sob a direcção de Manuel Fernandes Tomás, sendo eleita uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, destinada a governar em nome do rei e a reunir Cortes Constituintes. A Constituição de 1822 transforma a monarquia absoluta em monarquia liberal, e ao domínio soberano do rei substitui três poderes: legislativo; executivo; judicial. D. João VI regressa, jura a Constituição e enceta nova fase governativa. No Brasil, D. Pedro, que ali ficara com a categoria de regente, recusa-se a voltar a Portugal e proclama a independência (1822). A situação política portuguesa deu origem à formação de dois partidos rivais: absolutistas ou realistas, que pretendiam a continuidade das instituições anteriores; liberais ou constitucionais, defensores da ordem nova. À primeira revolta realista de Trás-os-Montes, seguiram-se a Vila-Francada e a Abrilada pronunciamentos militares comandados pelo infante D. Miguel. D. Pedro, considerado herdeiro do trono, outorga ao País uma Carta Constitucional (1826), destinada a substituir a Constituição de 1822, e abdica em sua filha. Durante a menoridade desta, D. Miguel deveria governar de harmonia com a Carta. Os seus partidários, porém, aclamam-no «rei de Portugal», enquanto os liberais formam na ilha Terceira um governo oposicionista, apoiado por D. Pedro, que deixa o Brasil e organiza uma expedição com a qual desembarca no Mindelo. Desencadeada a guerra, são vencidas as forças de D. Miguel e assinada a Convenção de Évora Monte (1834). Os liberais voltam definitivamente ao poder e continuam a decretar as reformas iniciadas por Mouzinho da Silveira. D. Maria II, que subiu ao trono após a morte de seu pai, viu-se logo de início em sérias dificuldades para manter o equilíbrio entre os partidos que dividiam os liberais, uns defensores da Constituição de 1822 («radicais» ou «vintistas»), outros da Carta Constitucional («conservadores» ou «cartistas»). Daqui uma série de lutas, que perturbam o seu reinado: Revolução de Setembro e Belenzada (1836), Revolta dos Marechais (1837), Revolta de Costa Cabral (1842), Revolução da Maria da Fonte (1846), Regeneração (1851). A acalmia foi-se estabelecendo lentamente, acompanhada de medidas de vasto alcance, entre as quais se distinguem as de Costa Cabral (agricultura, comunicações, cultura, administração), Fontes Pereira de Melo (caminhos de ferro, estradas, telégrafo, instrução agrícola e industrial) e Passos Manuel (instrução primária, ensino liceal). É abolida a escravatura e a pena de morte. Sá da Bandeira decreta importantes providências de interesse para as colónias. Revelam-se alguns dos nossos melhores génios literários (Herculano, Garrett, Castilho, Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós) e artísticos (escultores Soares dos Reis e Teixeira Lopes, pintores Malhoa e Columbano). Em meados do séc. XIX, o continente negro começa a despertar a atenção das potências, que favorecem expedições de exploradores e cientistas. Portugal acompanha este movimento. Às viagens do começo do século, como a de Silva Porto, seguem-se as de Capelo e Ivens, Serpa Pinto e António Maria Cardoso. As grandes potências, começam, entretanto, a disputar a posse da África e, em especial, dos nossos domínios. A Conferência de Berlim (1884) fixa determinados princípios basilares que levam os Estados a delimitarem as fronteiras das colónias. A Inglaterra, não concordando com as nossas alegações em favor da posse do território situado entre Angola e Moçambique, impõe-nos a sua vontade pelo Ultimato de 1890. Só então Portugal inicia as campanhas de ocupação africana, nas quais se distinguem Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Alves Roçadas e João de Almeida. O fim da monarquia liberal é precipitado pela crise que sucedeu ao Ultimato. Renasce a agitação política, e o Partido Republicano, revigorado mercê dessa crise, organiza uma revolução que rebenta no Porto, em 31de Janeiro de 1891, sem conseguir triunfar. As lutas partidárias tornam-se mais violentas.D. Carlos fecha o Parlamento e confia o governo a João Franco, mas é assassinado em 1908. D. Manuel II procura evitar, sem o conseguir, a derrocada da monarquia. A República é proclamada em 5 de Outubro de 1910 .

Correntes literárias que influenciaram Antero de Quental

Niilismo
O niilismo é a doutrina da negação radical, da absolutização do nada. No seu pessimismo radical, está latente a negação do mundo, dos valores e da própria sociedade. Em filosofia, o niilismo leva ao cepticismo, em moral ao amoralismo e em política ao anarquismo. O niilismo é fruto de uma opção vital: a sua refutação, faz-se com uma opção contrária, baseada esta na força da evidência, de uma fé inabalável no sentido do mundo e da vida.

Satanismo
É a atitude assumida por certos escritores, de revolta contra a divina ordenação da existência e como culto voluptuoso da danação, com a consequente inversão dos valores éticos e profanação dos actos litúrgico-religiosos.

Pampsiquismo
Pampsiquismo é a doutrina segundo a qual toda a matéria é não só viva mas também possuidora de uma natureza psíquica análoga à do espírito. Renasceu com os cientistas modernos, como E. Haeckel, como fundamento da sua tese do evolucionismo universal. Renegando a noção de criação, buscam em vão no pampsiquismo a razão de ser das características e finalidade verificadas em todas as coisas existentes.

Petrarquismo
Movimento que surgiu com o poeta e humanista italiano Petrarca. Cria do amor irrealizável a imagem cristalizada de uma perfeição incoruptível, que faz do tempo humano um reflexo da eternidade divina. Ao mesmo tempo exprime a sua divisão entre as aspirações ascéticas e as seduções do mundo por meio de múltiplos jogos de antiteses.

Realismo
O realismo é a disposição ou tendência de conformar-se com a realidade ou de considerar as coisas como elas são. Designa em filosofia a doutrina que ensina a existência da realidade independentemente do nosso conhecimento, e o conhecimento desta, ao menos dentro de certos limites. Tanto na literatura como nas artes plásticas, o realismo pretende dar a reprodução exacta da realidade, sem a modificar, idealizar ou deformar. De um mesmo objecto, pode haver um realismo que falseia a realidade e um realismo que o revele com muito maior objectividade.

Panteísmo
É a palavra grega que significa «tudo é Deus» representando a doutrina filosófica segundo a qual Deus e o mundo se não distinguem no ser. Identifica Deus e o mundo, o criador e a totalidade da criação. Há diversas formas de panteísmo, que está na origem de muitas religiões da Índia. Ignorando a participação e a analogia dos seres, o panteísmo não mantém a diferença ontológica entre o finito e o infinito, entre a imanência e a transcendência, assimilando os dois termos. Exemplos de sistemas filosóficos subsidiários do panteísmo são os de Espinosa e de Hegel.

Hegelianismo

Filosofia que intenta chegar à compreensão da realidade total identificando-a com o absoluto (Ideia) do qual a natureza e o espírito não são senão formas sucessivas. E a ideia absoluta desenvolve-se através de um processo dialéctico de 3 fases: tese, antítese e síntese. No hegelianismo não há lugar para um Deus transcendente nem para a independência da pessoa humana. A História, os povos, os heróis, o direito, o Estado, a Arte, a religião e a Filosofia não seriam mais do que formas sucessivas de a Ideia ir tomando consciência de si própria.

Socialismo utópico
O Socialismo surgiu como movimento e doutrina político-económica que, visando suprimir a desigualdade e as classes sociais, preconiza a supressão da propriedade privada dos meios de produção. O socialismo começou por ser «utópico», isto é, é igualitarista, cooperativista, mas sem uma estratégia de poder, com o inglês Owen e depois, em França, com Saint-Simon e Fourier, entre outros.

Metafísica

Pretende-se, com esta disciplina da filosofia, ultrapassar o domínio da experiência e atingir o próprio ser e os seus atributos essenciais, procurando, assim, resolver problemas suscitados pela experiência, mas que só encontram a sua solução num outro plano. Deste modo, tem sido entendida, por oposição às ciências positivas, como uma disciplina do inteligível, das primeiras causas e dos primeiros princípios como a definiu Aristóteles.

Budismo
A doutrina de Buda tem como base dois dogmas: reencarnação e libertação final. O método da via de libertação consiste em descobrir a realidade que existe para além das aparências, superando as ilusões, as paixões e a dor. Para o budismo a morte é sempre seguida de um renascimento (reencarnação), o que significa que o ideal seria a quebra desta sucessão de mortes e renascimentos para se atingir a extinção (Nirvana). O Nirvana é a última etapa da existência que apenas se atinge fora da Lei das acções (Karma) e da reencarnação.

Biografia e drama espiritual de Antero

Antero de Quental aparece-nos como o principal mentor da Geração de 70 nas suas origens, e simultaneamente como poeta, polemista, doutrinário e testemunha epistolográfica. Mas, ao longo da sua evolução, a sua poesia e o seu pensamento traduzem de forma paradigmática um drama pessoal (e geracional) que resulta, entre outras coisas, de um desajustamento entre certa filosofia progressista e humanitarista europeia dos anos 50 e 60 e a situação histórica, sobretudo nas condições sociais portuguesas. Daqui resultou a biografia espiritual talvez mais dramática da literatura portuguesa, de que os textos doutrinais, numerosas cartas e os poemas assinalam a evolução.

Apoiado, talvez, pela educação materna, que se manteve prevalecente até finais da adolescência e ainda em seguida iria perdurar de um modo menos visível, houve sempre nele um fundo de religiosidade tradicional, condizente com o velho morgadio açoriano que herdou e constituiu a estável, embora modesta, base material da sua vida; entre os seus antepassados conta-se pelo menos um asceta, o padre Bartolomeu do Quental, organizador, como vimos, da Congregação do Oratório no nosso país. Um dos mais veementes apelos do seu temperamento, quer na fase inicial quer na fase final da sua vida literária, foi o da santidade mística, que se transmudou, durante a fase mais intensa e combativa, numa devoção dramática, pela voluntariedade externa e interna, a um sentido democrático-social de vida, sentido todo imanente a uma concepção evolucionista do mundo físico e da sociedade humana. Tal combatividade progressista existia também na tradição familiar, pois um dos avós, companheiro de Bocage, sofrera perseguições e prisões absolutistas e fora mais tarde deputado às Constituintes; e, além de um primo, o próprio pai vivera no exílio, donde regressara com os 7500 bravos de Mindelo.
Em 1858, com 16 anos, inscreve-se na Universidade, depois de três anos de estudos preparatórios em Coimbra; data do ano seguinte a sua primeira poesia mencionada, feita sob inspiração de um poema religioso de Herculano que já o impressionara desde os 10 anos. Herculano será um dos mais importantes mentores da sua carreira; nas cartas que durante anos escreverá a Oliveira Martins, as expressões sinónimas "o Herculano", "o Velho", "o Mestre" soam com insistência e num tom de simpatia e intimidade filial. Mas nos primeiros tempos universitários não é ainda a filosofia da história portuguesa que o interessa; é o sentido (herculaniano) de uma grandeza imensurável para além da vida comum, a transfiguração da paisagem a um sopro tempestuoso do Eterno que bafeja no Homem uma correspondente grandeza de atitudes morais. Este senso da grandeza cósmica e moral vazar-se-á, vê-lo-emos, em moldes hegelianos e humanitaristas. Mas, para já, e no prolongamento da sua educação tradicionalista, abrem-lhe caminho à admiração e imitação em verso de Lamartine e de certos poemas do romantismo português nos anos 50, como O Firmamento, de Soares de Passos.
Entretanto, ao longo de um aproveitamento escolar sem nada digno de nota até à formatura, evolui desde contestações meramente praxistas de um temperamento irrequieto, pelas quais chegou a ser castigado, a atitudes cada vez mais significativamente combativas. Dentro de um numeroso grupo estudantil a que pertence, a Traça, organizou uma espécie de directório, a Sociedade do Raio, para orientar um movimento contra o foro académico e um reitor que o personificava; numa sessão destinada a homenagear o príncipe herdeiro da Itália, saúda-o, em nome da Academia, não como representante da Casa de Sabóia, mas como filho de um dos libertadores da sua pátria, amigo de Garibaldi; e para reagir contra certas medidas de repressão aos movimentos académicos, promove em 1864 a famosa "Rolinada", protesto de grande parte da Briosa sob a forma de um êxodo para o Porto, "berço da liberdade portuguesa". No campo ideológico e especialmente literário, esta evolução coincide com manifestações de entusiasmo em torno das lutas progressistas europeias: movimentos de emancipação e unificação nacional como os da Polónia e da Itália, a resistência crescente a Napoleão III, cujo mais célebre arauto, Vítor Hugo, já encontrara ecos portugueses, especialmente em Mendes Leal, nos poemas motivados pelo caso da barca "Charles et George", que Antero declamou numa reunião, e em certos esquecidos poetas portuenses, que parecem tê-lo influenciado quando da "Rolinada". Sob o ponto de vista formal, foi então decisiva a convivência com João de Deus, que, segundo afirma, lhe teria revelado "o soneto como ele é, como deve ser".
"Varrida num instante" a sua educação tradicionalista, como dirá mais tarde numa carta autobiográfica ao seu tradutor alemão W. Storck, passou, como outros companheiros, por um ideário irreligioso, liberal-tolerantista, do Progresso, provavelmente inspirado por Vítor Hugo e Pelletan, panfletário e inimigo ideológico do Segundo Império, cujas concepções esquematicamente racionalistas acerca da morte da música e da poesia ainda conservará mais tarde, mas que entretanto aborrecerá tanto como ao positivismo seu afim; e, quanto aos problemas portugueses, parece ter então feito caminho do municipalismo e antiultramontanismo de Herculano até às doutrinas de Henriques Nogueira, que o abeiram de Proudhon. Mas as poesias que escreve até 1864 e hoje figuram, quer na primeira edição dos Sonetos, 1861, e na Beatrice, 1863, quer nas Primaveras Românticas, só editadas em 1875, e nas três edições sucessivamente aumentadas e póstumas de Raios de Extinta Luz, documentam, como veremos adiante, uma grande multiplicidade de ideias e preocupações desde cerca dos seus 20 anos.

Quando, por fins de 1863, conclui as Odes Modernas, que apenas serão publicadas em 1865, depois da sua formatura em Direito, Antero assimilara aquele conjunto de influências atrás apontadas na sua geração. A atitude doutrinária deste livro contrasta com a da anterior poesia portuguesa, incluindo a do Romantismo humanitarista e protestativo até então conhecido, apresentando-se como bem explicitamente revolucionária. Com efeito, das Odes está banido o sentimentalismo erótico, a religiosidade lírica lamartiniana pretextada na paisagem - a favor, não de uma vaga compaixão social, mas de um corpo de doutrina; ao cristianismo dos primeiros românticos opõe-se um panteísmo em que, sob a inspiração de Michelet (ecoando Vico e Herder, e completado por Proudhon e pela Vida de Jesus de Renan, 1863, tradução portuguesa 1864), os mitos e religiões, incluindo a de Cristo, aparecem como fases poéticas ultrapassadas na vasta epopeia da Humanidade, fases em que ela ainda não dominava a fatalidade das leis naturais para, controlando-as, instaurar a lei da sua própria liberdade. Esta lei da liberdade era a da Justiça demandada pela Revolução proudhoniana, e era a Ideia hegeliana, que, não deixando de ser transcendente e eterna, se fizera, contudo, também imanente à evolução natural, depois à história inconsciente e, por fim, imanente à própria consciência dos homens. Deve frisar-se que exposições francesas do hegelianismo lançam então raízes inextirpáveis em Antero. Ele nunca deixará de ver a realidade como o desenvolvimento da Ideia, ou plano imanente, através da autonegação evolutiva por tese, antítese e síntese, que, segundo Proudhon, corresponderiam a séries qualitativamente diferentes de fenómenos. Segundo este idealismo objectivo que ele abraça, a história realiza a Ideia, e um papel decisivo cabe aos mentores intelectuais, "reveladores santos da Ideia", os seus semeadores no "campo" ou "chão" fecundo da Humanidade.
Mas durante todo o período mais combativo de Antero, o de 1863-75, aquele em que domina a tendência designada por António Sérgio como apolínea ou diurna (em oposição à tendência romântica ou nocturna, sempre aliás coexistente com essoutra), o seu hegelianismo apresenta já ambiguidades prenunciadoras de atitudes posteriores. De facto, o hegelianismo anteriano foi bebido, não directamente, mas em expositores ou intérpretes como Vera, Rémusat e o próprio Proudhon. É provavelmente de Vera que Antero deriva a acentuação daquilo que na Ideia de Hegel ainda há de virtualmente teológico: o seu carácter, no fundo deísta, de "universal espírito", imanente à natureza e à história, e cuja realização seria, portanto, não (como em Hegel) a das leis objectivas, naturais (depois concebidas pelo espírito humano e estatizadas), e sim este mesmo espírito humano, verdadeiro templo da Justiça proudhoniana, co-eterna, por assim dizer, à Ideia; mas, em muitos seus textos, ocorrem, quer a concepção tradicional de um Deus transcendente, quer a da sua pura imanência ao Homem como impulso para um Absoluto ou um Bem moral (pensamento típico de E. Vacherot). Por outro lado, ao longo da sua evolução de 1865 a 1890, Antero, ora, na sequência de uma esquemática concepção iluminista (que, por Vico, chega a Hegel e Pelletan), profetiza o fim próximo da poesia, pretenso resíduo da mentalidade primitiva, e da música, pretensamente solidária do individualismo romântico; ora faz a contraditória e bem pouco hegeliana reivindicação de um papel independente para o sentimento subjectivo, como absolutamente irredutível a conceito; ora exalta o extremismo irreconciliável da tese e da antítese, de cuja luta sem quartel, unicamente, viria o progresso (justificando a esse título a encíclica antiliberal Quanta Cura); ora, proudhonianamente, parece conceber a síntese como sendo a conciliação das contradições fundamentais, em vez de ver nela a negação directa da última negação consumada numa sequência de negações sucessivas. Veremos adiante, a propósito da poesia, as implicações literariamente mais concretizadas dos conflitos ideológicos de Antero.
Já no capítulo anterior nos referimos à Questão Coimbrã e às Conferências Democráticas, em que Antero desempenhou o papel de protagonista. Registemos aqui apenas, para evidenciar os conflitos através dos quais se vai processando o seu drama espiritual, que, depois de concluído o curso e travada a batalha de seis meses do Bom Senso e Bom Gosto, cujo melhor e ainda hoje mais vivo documento foi o seu folheto sobre A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, depois de disperso o seu curso coimbrão, o jovem poeta e polemista regressa por um tempo ao solar açoriano e estremece com este sentimento, esta "coisa nova: a consciência de proprietário"; e que, pouco depois, em seguida a um breve tirocínio numa tipografia lisboeta, vai a Paris, para passar pela experiência dura de operário tipógrafo (1866-68). Cedo, porém, se malogra o esforço heróico da adaptação do filho-família micaelense a um trabalho e a um ambiente para que não estava intimamente preparado. Há então um regresso desalentado e secreto à quinta minhota do amigo Alberto Sampaio, depois a Ponta Delgada, uma viagem à América. Até que, instalando-se em Lisboa, no ambiente exaltado de uma crise dinástica espanhola, da queda de Napoleão III, da Comuna de Paris, rodeado por velhos companheiros coimbrãos e outros moços abertos às novas luzes, surge aquilo a que, por analogia com um grupo do romantismo progressista francês, se chamou, depois, o Cenáculo, organizador das Conferências Democráticas .
Visto terem sido atrás versados, em capítulo à parte, as origens, as intenções, o desenrolar e a suspensão das Conferências, limitemo-nos a salientar aqui a filiação herculaniana da tese de Antero sobre quais teriam sido as Causas da decadência dos povos peninsulares : a Contra-Reforma, o absolutismo régio e a expansão ultramarina, que é como quem fala numa só causa complexiva, a estrutura antidemocrática das nações ibéricas desde meados do século XV com vista à conquista e exploração de terras no além-mar. Esta filosofia da história peninsular já, porém, aponta, como remédio, não a proposta municipalista pequeno-burguesa e basicamente agrária de Herculano, mas a utopia proudhoniana de um princípio federalista, que se estenderia desde um largo campo político (federação livre de repúblicas peninsulares) até à organização económica (federações de associações dos produtores). Contudo, Antero sentia-se discípulo do grande historiador, inclusivamente da sua liberalização romântica do Cristianismo, ao reivindicar, por seu turno, nas Odes, que "a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno". E do mesmo modo que o Mestre participara sempre nas lutas decisivas da sua geração, Antero, não apenas colabora na imprensa republicana sindicalista e publica opúsculos de propaganda para as organizações operárias, como, ligado a José Fontana, empregado livreiro, organiza a secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores (1872) e concorre mais tarde às urnas como candidato do Partido Socialista, fundado em 1876. É de notar que Antero e Fontana não aderem no fundo à linha marxista, prevalecente na I Internacional entre 1872 e a sua extinção em 1876, mas a uma sua latente divergência anarquista, de tradição proudhoniana e representada por Bakounine (n. 1876); e ainda que, no âmbito nacional, Antero se opõe desde cedo, e com veemência, aos republicanos, que se constituem em partido em 1876.

No entanto, toda esta actividade constituía uma violência moral, com laivos de heroísmo, exercida sobre um outro sentimento mais antigo e radicado de vida, ou, para usar terminologia sua, outro ideal de santidade. E, na verdade, quer certas confidências em cartas, quer certas poesias "nocturnas" desta mesma época (tal o soneto À Virgem Santíssima), quer a interpretação que de tudo fará mais tarde em carta autobiográfica ao seu tradutor alemão, revelam os antagonismos íntimos em que se debate. Acresce que a estabilização política da monarquia espanhola, da III República francesa, da Itália e Alemanha unificadas, as repressões à Internacional, a instauração em Portugal de um estéril rotativismo bipartidário após a crise final da Regeneração e o malogro das primeiras greves extensas do País - tinham fechado perspectivas à linha rectilínea de acção que seguia, deixando apenas esperanças ao republicanismo pequeno-burguês de Teófilo, ou ao "socialismo de cátedra" que, com o seu apoio, Oliveira Martins irá tentar dentro do statu quo político. De modo que um regresso, em 1873, a S. Miguel, quando, por morte do pai, lhe cabe o património dos Quentais, assinala o fim da face solar, entusiástica, em que, sob o signo da Razão, se dizia:

Escuta! é a grande voz das multidões!
..............................
Ergue-te, pois, soldado do futuro,
E dos raios da luz do sonho puro,
Sonhador faze espada de combate!


O seu combate concentrar-se-á na redacção de um Programa dos trabalhos para a geração nova, já começado em 1871, que será destruído antes de terminado. Surge-lhe então, pelos começos de 1874, uma doença minaz com cujo diagnóstico e terapêutica nenhum médico parece ter atinado, nem mesmo Charcot, que foi consultar a Paris, doença ainda postumamente discutida por uma sumidade nacional como Sousa Martins, pela dissertação em Medicina de Jaime Cortesão, por Miller Guerra e por psiquiatras e psicanalistas. Obrigado a manter-se o mais possível deitado de costas, enfraquecido por incapacidade de alimentação substancial, muito irritável, moralmente abalado pela ineficácia dos tratamentos a que se sujeita em Portugal e em França, e ainda por complicações sentimentais intensas, que, aliás, mal afloram à obra poética, a sua filosofia evolui a partir de então num sentido pessimista. Isso coincide aliás com a ideologia europeia em voga, pondo, por isso mesmo, o delicado problema de determinar qual a importância relativa na interacção dos factores psíquicos, filosóficos e históricos desta fase anteriana.
Já desde 1872 se reconhecia dividido entre duas alternativas , dois factores : "Penso como Proudhon, Michelet, como os activos: sinto, imagino e sou como o autor da Imitatio Christi ". Mas a "náusea da realidade", o "desejo do Nirvana" búdico, ou seja, da autonegação pessoal, antes oculto, vai agora tornar-se predominante. Para dar forma filosófica a tal pessimismo, concorre a leitura de divulgadores ou exegetas da mística budista, por então em moda na cultura ocidental, e dos expositores franceses de Schopenhauer e, sobretudo, de E. von Hartmann. De acordo com este último, a Ideia hegeliana (já, como atrás dissemos, interpretada através de Vera num sentido acentuadamente teológico) transforma-se no Inconsciente, mundo de forças psíquicas tenebrosas, indevassáveis, que animaria quer a evolução do mundo material quer os movimentos de cada consciência individual. O panteísmo mantém-se, mas mudando o sinal positivo para negativo: em vez de ser um momento dinâmico da acção vital, a Dor (maiusculada, como a Morte, o Tédio, a Noite, e outras entidades negras da nova mitologia) converte-se em único ente supremamente real, ente que a própria morte individual, a própria extinção da espécie humana não aniquilaria, a menos que, por um prodígio, a Natureza Inconsciente assumisse consciência do seu mesmo mal, e se aniquilasse como vontade de ser; ao ideal do Progresso sucede, portanto, a ânsia do Nirvana búdico, interpretado por Antero como negação da realidade física; ao culto da Razão diurna e activa, o da Noite pacificante do Não-Ser, que se identifica com o Ser absoluto; a Luz do "claro Sol, amigo dos heróis", transmuda-se em "símbolo da mentira universal" ou da "universal traição".
A partir de 1880, a onda pessimista está a findar, depois de tanta ênfase posta numa filosofia tão débil, quase mitológica. A função efectivamente exercida por essa onda consistiu em dar evidência a uma realidade isolada entre tão grandes destroços, a realidade do sentimento, que Antero desde cedo antepunha à Ideia de Hegel e à Justiça de Proudhon, como base de uma ética de contornos sociais muito vagos. Essa realidade, uma vez bem isolada, servirá de ponto de partida para um novo idealismo, já não pronunciadamente objectivo como o de Hegel, mas de tonalidade subjectiva, como o da dialéctica de Fichte, de resto já presente na interpretação que Vera lhe dera do hegelianismo. Após duas candidaturas meramente simbólicas a deputado socialista, em 1876 e 1880, Antero, retirado em Vila do Conde numa vida de recolhimento, leitura e meditação, convive apenas, e de longe a longe, com raros amigos, sobretudo Oliveira Martins, então residente no Porto. Anima este último como se ele fosse um seu alter-ego ainda empenhado na vida pública, uma espécie de condiscípulo na actualização de Herculano, mas através de compromissos, pactos, transigências que veremos e a que "o Velho" já não poderia servir de paradigma.
As cartas que desde há alguns anos vinha escrevendo a Oliveira Martins constituem, de facto, uma documentação quase tão preciosa como seria um seu diário íntimo, acerca da sua trajectória espiritual: várias vezes polemiza com o amigo para o persuadir da necessidade histórica, pelo menos "ideal", de uma fase de Transcendentalismo, entre Sócrates e o Cristianismo medieval. É também significativo que a sua discussão se encaminhe sempre, quanto a isso, no sentido de valorizar essa fase transcendentalista desde o politeísmo até ao imanentismo, entendendo este, não como subordinação progressiva do mundo à acção social humana, mas como afirmação da superioridade do eu moral sobre os deuses e a natureza. Além da mitologia, também o "naturalismo" seria, como forma histórica de mentalidade, anterior, inferior, portanto, ao idealismo subjectivo. Deste modo, através da sua fase pessimista, cujo carácter transitório e instrumental sempre vincou mais tarde, é efectivamente o materialismo, quer dizer, a tese do primado da realidade objectivável sobre a consciência humana (ou outra), aquilo que, sob a designação de "naturalismo", constitui o verdadeiro alvo da sua ofensiva principal. Na arena ideológica mais próxima, a dos modestos doutrinários portugueses, o adversário imediato era, porém, o positivismo, que, apesar da sua neutralidade quanto à questão de saber se o espiritual resulta da transformação do material ou vice-versa, se aparentava com o "naturalismo" em valorizar as conquistas materiais do progresso, em encarecer o ponto de vista sociológico, e, no nosso país, em se ligar com um amplo movimento pequeno-burguês: a propaganda republicana.

De facto, nas cartas a Oliveira Martins, e noutras, a admiração por Herculano é tão insistente como o desprezo por Teófilo Braga (personagem aliás de muito menor finura), desprezo que abrange a movimentação do Partido Republicano, nomeadamente, em 1880, pelas Comemorações Camonianas, expressão eficaz da autoconfiança e capacidade organizadora dos republicanos. Nestas condições, Antero arrima-se à combatividade de Oliveira Martins para não deixar soçobrar aquele mínimo de interesse pela coisa pública que era necessário à estrutura do seu carácter; e a extraordinária lucidez com que vê os perigos à espreita desse carácter revela que a luta entre os dois Anteros continua, embora travando-se num terreno da retaguarda, o da sua simples auto-sinceridade.
Mesmo em Maio de 1874, pela altura em que, com a doença, se iniciava a fase do pessimismo filosófico, já Antero reconhecia a sua própria divisão interna, a "barreira intransponível entre a intenção e a deliberação", e se confessava devedor ao amigo pelo senso que mantinha dos problemas humanos: "Chamou-me à realidade viva, humanamente natural, de que por um insensível e contínuo desvio o meu temperamento místico tende sempre a afastar-se, em não havendo influências externas que me chamem à razão - e V. é para mim essa razão... como direi, a boa razão, numa palavra, positiva, real, justa"; de outro modo a solidão levá-lo-ia para "uma vida ensimesmada, toda interior e subjectiva, e por aí exclusiva e viciosa, levando ao esquecimento da razão positiva e do próprio bom senso, apagado num nevoeiro de abstracção e sonho, onde há perigo de naufragar, juntamente com a vontade e amor das coisas naturais, a própria dignidade do homem". E quando já namorava o budismo e tendia para o "misticismo" (Julho de 1873), ainda reconhecia: "O absoluto, para estar racionalmente na vida humana, deve ser praticado e não contemplado : quero dizer que, em vez de nos imobilizarmos no esforço contraditório de realizarmos em nós o absoluto (que não tem realidade), o que devemos é praticar a vida como quem sabe que cada acto e momento dela é um acto e momento do absoluto"

Esta lucidez em pouco mais se traduz, efectivamente, do que em exortações ao amigo, de quem se contentará com ser a "testemunha consolada", quando muito o filósofo tutelar. No capítulo seguinte veremos em que consistiu a carrreira pública de Oliveira Martins. Basta, por agora, notar que essa carreira evolui no sentido de uma cada vez menor confiança em camadas populares, abandonando primeiro o apoio das organizações operárias pela manobra política junto dos dois partidos monárquicos "rotativistas", e abandonando mais tarde o jogo parlamentar e partidário por uma manobra de influência pessoal junto do futuro rei D. Carlos, através do grupo meio literário meio áulico e dandy dos Vencidos da Vida, em que Antero participou, ao lado de Eça, Ramalho e Junqueiro. O Ultimato de 1890, precedido pelo início do novo reinado e logo seguido de uma grave crise económica e financeira com que Oliveira Martins contava, de longe, como ensejo para fazer vingar no poder o seu programa de reformas, traz o desengano a tais esperanças, aparentemente tão realistas nas suas transigências tácticas: Oliveira Martins previa agora uma ditadura de apoio régio (cesarismo) e uma desapiedada colonização angolana justificada em termos de uma espécie de darwinismo racial ariano. Mas Antero não chegou a conhecer em toda a extensão o desengano do amigo.
No seu retiro, onde se entregava à educação de duas órfãs de um antigo companheiro de Coimbra, Germano Meireles, à leitura e a um esforço meditativo destinado a equilibrar num sistema filosófico as solicitações ainda em luta no seu espírito - nesse retiro acede ainda a presidir à Liga Patriótica do Norte, resultante da vasta comoção patriótica desencadeada pelo Ultimato e empenhada em refazer toda a vida portuguesa na base de um concerto de boas vontades progressivas. No entanto, talvez desgostado com o maior dinamismo revelado no movimento pelos republicanos, demite-se, apressando a dissolução da Liga, e cai no seu mais desesperado pessimismo nacional.
Decide em seguida regressar a S. Miguel, para que as suas educandas, terminados os estudos escolares, possam conviver em família com outras pessoas, além de um inexperiente tutor celibatário. Mas desencadeiam-se incompatibilidades caseiras e, com elas, com toda uma série de factores imponderáveis, agrava-se de súbito o mal-estar físico e psíquico. Mata-se em 11 de Setembro de 1891. Era a falência, como armadura moral, da tão apregoada doutrina "mística", exposta pouco antes para a Revista de Portugal dirigida por Eça de Queirós, naquilo que passaria a ser o seu testamento filosófico: o ensaio de interpretação e crítica às Tendências gerais da filosofia na segunda metade do séc. XIX .
A estrutura ideológica deste ensaio tem uma grande importância para a história da cultura portuguesa, porque, apesar de combinar, sem extraordinária originalidade, inspirações bem reconhecíveis da filosofia europeia desde Leibniz aos neokantianos, constitui a mais reflectida expressão de uma crise que se abria, e que não pôde ser vencida ao nível daquela experiência que se encetou na fase ascendente da Geração de 70. No terreno especificamente literário, poderiam apontar-se em toda a ficção contemporânea e posterior a esse ensaio as mesmas contradições irresolvidas que nele se acusam.
A maneira como Antero formula os problemas centrais que considera como seus e da sua época é ainda, em certo sentido, hegeliana. É-o, em primeiro lugar, porque (pelo menos no início do ensaio) não pretende que a sua formulação seja definitiva e intemporalmente válida; em segundo lugar, porque procura sobretudo determinar as contradições doutrinárias básicas da sua época (as teses e as antíteses), a fim de as superar numa síntese que servisse para o seu governo.
Segundo Antero, a tese ideológica, o ponto de partida reflexivo da sua época, seria aquilo que designa, no correr da sua larga epistolografia, como naturalismo científico (incluindo, como caso especial, e não de todo consequente, o positivismo). As características desse naturalismo, desse pensar cientista, seriam o mecanismo (explicação do superior, nomeadamente o fenómeno psíquico, pelo inferior, nomeadamente as forças e massas mecânicas), o determinismo (causalidade necessária e exterior a cada fenómeno) e o evolucionismo (no sentido spenceriano do termo: a passagem do simples ao complexo, a constante complicação dos fenómenos por acumulação diversificante). Este, em resumo, o "gélido fatalismo soprado pela ciência sobre o coração do homem", esta a visão puramente científica do universo, "que nada nos diz ao coração". Como pode ver-se, Antero responsabiliza a ciência sua contemporânea por um materialismo que poderia ser sugerido pela física newtoniana mas que já então se superara, quer reconhecendo não apenas graus de complicações quantitativas, mas também uma cada vez maior e mais cambiante diversidade de fenómenos com leis próprias e só integráveis dentro de uma génese geral (fenómenos físicos, químicos, biológicos, psíquicos, sociais, como classificação sumária); quer, por isso mesmo, plasticizando o conceito-limite e filosófico de matéria (que já tanto abrangia massa mecânica, como molécula química, campo electromagnético, organização fisiológica, por exemplo).
A tal naturalismo, ou materialismo metafísico, opõe Antero, como antítese, o "facto íntimo", experimental e irredutível da consciência espiritual, cuja característica seria a espontaneidade ou força autónoma (causalidade intrínseca, e não externa, a autodeterminação, o causar-se a si mesma, o existir em si e por si). Uma vez postulado o carácter inerte da matéria, isto é, a sua condição de submetida a uma e a mesma lei para todo o sempre, e, opostamente, postulada a espontaneidade ou autogeração absoluta da força espiritual, a contradição parece irredutível; mas é então que Antero faz intervir, como síntese, um novo postulado, o de que a consciência, o espírito, constituiria a força-tipo, o modelo mais definido desde o qual poderia explicar-se a própria natureza material. A natureza seria, afinal, não inerte, mas autodeterminadora, causa sui, no todo, e, por grau ínfimo que fosse, nas suas partes supostamente mecânicas: o sujeito seria o paradigma explicativo do objecto, o inferior não passaria de o superior sob forma incipiente. Antero conhecia já críticas, de A. A. Cournot e E. Boutroux, ao determinismo da previsibilidade absoluta de Laplace; mas não encara agora as leis científicas (mesmo contingentes) como meios de disponibilidade, ou liberdade humana, à maneira da tradição progressista dialéctica da sua juventude - e sim como ilusões a que sobrepõe a evidência psíquica de outra lei: a lei moral.

O núcleo desta filosofia "dinamista" remonta, na verdade, a Leibniz, que a opusera ao mecanismo cartesiano do seu tempo. Fichte enxertara-a no hegelianismo, e Antero já a bebera tendencialmente em Vera e em Rémusat, durante a fase combativa. Mas vinha agora acomodar-se melhor à sua integração afectiva no mundo contemporâneo português, e reforçar-se pela leitura de expositores como Désiré Nolen, e Friedrich Lange, o primeiro empenhado em reduzir Kant ao espiritualismo leibniziano, e o segundo em contestar todas as formas historicamente conhecidas de materialismo, à base das críticas de Kant. Com efeito, Antero associa o espiritualismo às correntes neokantistas da sua época, porque assim encontra vazão para uma das suas mais constantes tendências, a de salvaguardar a eternidade e santidade herculaniana, proudhoniana, da lei moral. O determinismo, a passividade da natureza seria uma ilusão fenoménica, através da qual irrompia o imperativo categórico do Dever, como testemunho, único, mas irrefutável, de um livre-arbítrio, uma espontaneidade, uma autocriação - a autocriação de um eu absoluto (em linguagem de Fichte-Vera), eu último de todos os eus, eu simultaneamente causa e fim últimos, que cada um de nós poderia atingir pela prática do dever e pela comunhão mística afectiva do Amor ou Bem Supremo, absoluto da santidade, centro unitivo, plenitude do Ser e dos seres, que não conhece morte e que, portanto, só por ingenuidade egoísta ou santidade imperfeita se adiaria post mortem, como faz o cristianismo vulgar.
Não cumpre discutir aqui tal filosofia, que este resumo empobrece, mas salientar apenas o que mais importa à ideologia literariamente dominante de então para cá.


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2002 Porto Editora, Lda.

Antero e a prosa doutrinal do seu tempo

Além de poeta, Antero foi o nosso pensador especulativo do séc. XIX mais dotado de qualidades expositivas; ele próprio se reconhecia com o dom da prosa, o dom de subsumir num movimento de largo fôlego e de sóbria mas persuasiva dignidade todo o conjunto de razões e contra-razões enoveladas num problema geral. Pelo tom austero de moralista, pela seriedade que não quebra nunca, o seu estilo é ainda, mesmo na epistolografia conhecida, o de um orador romântico, mas com a plasticidade capaz de, sobretudo nas cartas, transformar em inovação rítmica, em incidente vivificador do discurso, uma hesitação no termo próprio, uma oportuna citação latina ou de língua estrangeira, um tropeço emotivo, uma busca de solução ao discorrer encetado. Esta qualidade oratória, com os seus períodos amplos sem prolixidade, deriva talvez um pouco de Herculano, mas elimina a afectação visionária e profética do precursor; a prosa anteriana pode, neste particular, apontar-se como um modelo, entre nós excepcional, de indiferença pela sugestão imaginífica ou humoral, de atenção, e mais que atenção, de amor pelos problemas como problemas. Quaisquer que sejam os seus erros ou ambiguidades, aprende-se, efectivamente, com a sua prosa a dignificar o exercício superior da razão.
Em contraste com Garrett, Eça ou Ramalho, o discurso de Antero ignora as subtilezas alusivas da ironia, recurso de imaginativos que não quadrava aos seus ideais, insatisfeitos, de personalidade que se quer racional e praticamente inteiriça; em contraste com Oliveira Martins, falta-lhe o poder de improvisação esquematizadora, a assimilação imediata de uma nova concepção histórica ou sociológica aos casos nacionais concretos, mas sobra-lhe precisão, busca de coerência e uma disciplina que (em prosa) não confunde ideias com alegorias ou personificações. Os testemunhos do In Memoriam que coincidem em apontar o seu escrúpulo autocrítico, o impulso imperioso de proclamar um erro próprio, verificam-se, por exemplo, considerando o rápido progresso que vai da iconoclastia ainda irreflectida, por vezes, do folheto Bom Senso e Bom Gosto, com as suas oposições simplificadoras, o seu exibicionismo de nomes, até ao folheto sobre A Dignidade das Letras, posterior de poucos meses, manifesto sóbrio e amadurecido de uma literatura portuguesa que se quer realista e se responsabiliza pelos destinos de um povo.
Sob o ponto de vista doutrinário, além de conceber uma nova responsabilização social do escritor e de repensar a história dando-lhe um novo sentido programático à luz das melhores esperanças europeias de 1865-74, Antero assimilou a dialéctica hegeliana, o humanitarismo francês e outras correntes do seu tempo, e, quaisquer que sejam as suas inconsistências, fez a melhor crítica nacional ao positivismo que, por volta de 1880, e até bem entrado o século XX, se tornou a corrente dominante da nossa opinião filosófica.

Com efeito, o positivismo, mais ou menos ligado a tendências materialistas mecanistas, evolucionistas (ou, mais vagamente, monistas), vindas quer de Comte e seus discípulos Littré, Herbert Spencer, quer do empirista Stuart Mill, quer dos monistas Haeckel e Buechner, inspirou homens de prestígio, como Teófilo Braga, já o vimos, Emídio Garcia (1838-1904), Júlio de Matos (1856-1922), Teixeira Bastos (1857-1902); forneceu critérios de acção política republicana, transvazou para o verso, tendia quase a constituir-se numa espécie de religião laica em Portugal e no Brasil. Claro que a crítica anteriana apresenta algumas feições históricas discutíveis. Sob esse aspecto, pode, dentro de um âmbito nacional, situar-se na linha de uma reacção anti-iluminista de que se descortinaram antecedentes em Herculano e, sob aspectos mais restritamente doutrinários, em Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Este último prolonga por inícios do séc. XIX o eclectismo dos Oratorianos entre Aristóteles e Locke, e daí chega ao espiritualismo, também no fundo ecléctico, de Leibniz, depois redescoberto por Antero.
É de notar a coincidente inspiração também leibniziana de Pedro de Amorim Viana (1822-1901), lente da Escola Politécnica do Porto, que se debruçou igualmente sobre Proudhon e sobre a crítica bíblica, de modo mais percuciente embora menos elegante do que Antero, e cuja Defesa da fé ou análise do racionalismo (1866) desenvolve as premissas metafísicas do seu mestre seiscentista em sentidos várias vezes convergentes com os de Antero: conciliação do determinismo com o finalismo moral, repúdio do sobrenaturalismo (embora declarando-se católico). O seu esforço de racionalizar a religião e de a adequar ao progresso científico e social conduziu-o, em 1852, a uma curiosa polémica com Camilo Castelo Branco, cujas posteriores tendências deístas já, aliás, conhecemos.
Contra o positivismo e também contra o racionalismo leibniziano, nomeadamente na exposição de Amorim Viana, reage mais tarde o polígrafo portuense José Pereira Sampaio (1857-1915), mais conhecido por Sampaio Bruno, republicano conspirador do 31 de Janeiro, cujos méritos principais são os de uma curiosidade infatigável, uma vasta informação (conquanto de um autodidactismo prolixo), uma grande finura na dilucidação de certos pontos concretos, incluindo, como já vimos, de teoria e crítica literária. Uma corrente posterior, tendente a propugnar a especificidade de uma "filosofia portuguesa", faz de Sampaio Bruno um dos seus luminares; mas, sob o ponto de vista filosófico, o que o caracteriza, depois de em O Brasil Mental (1898) ter voltado as suas baterias contra o positivismo, também muito radicado em terra brasileira e com que ele próprio tivera afinidades, é uma espécie de metafísica-mito de um Progresso inspirado por emanações da Divindade, tida como imperfeita (depois da Criação), mas emanações exercidas sob a forma de concepções cientificamente racionais, avessa aos sebastianismos tradicionais portugueses e a outros messianismos (A Ideia de Deus, 1902; O Encoberto, 1904). Esta metafísica, que tem aspectos heterogéneos (incluindo positivistas comtianos, como a rejeição do cálculo das probabilidades), atribui uma função à dor e ao mal (concebido aliás dialecticamente, como motor do progresso), ideia também insistente nas elucubrações literárias de Junqueiro, Pascoaes, Raul Brandão, Pessoa e de muitos outros escritores de início do séc. XX. O seu principal ponto de partida é o da fé científico-racional de Amorim Viana, a quem essencialmente critica o não-reconhecimento da realidade do mal, que é para Bruno a evidência da imperfeição de Deus, de uma sua incompletude que o progresso humano estava destinado a suprir.
Na crítica do positivismo, cujos principais representantes nomeámos, devem ainda mencionar-se, embora já não importem à ficção literária, José Maria da Cunha Seixas (1836-1895): A Fénix (1870), Sena Freitas (1840-1913: A Doutrina Positivista, 1875), Domingos Tarroso (n. 1860: Filosofia da Existência, 1881), Manuel de Ferreira Deusdado (1860-1918: Ensaios de Filosofia Actual, 1888) e o franciscanista Jaime de Magalhães Lima (1859-1936).


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

Obra poética de Antero. A juvenília

Para bom estudo temático e estilístico da poesia anteriana, convirá, pondo de parte a complicada história da sua arrumação em volumes (que pode ver-se adiante resumida em bibliografia), fazer-se a seguinte tripartição: 1) aquilo que designaremos como a sua juvenília (fundamentalmente: Primaveras Românticas e Raios de Extinta Luz); 2) as Odes Modernas (quer na edição de 1865, quer na já refundida de 1875); 3) os Sonetos, considerados à parte.
As poesias escritas até 1864 (com exclusão das Odes) e que figuram, entre outras posteriores mas afins, quer na primeira edição dos Sonetos, 1861, quer nas Primaveras Românticas, 1875, quer na terceira edição, a mais ampliada, de Raios de Extinta Luz, 1948, revelam, ao longo do tempo, um rápido processo evolutivo, de que já vimos os lineamentos gerais, e, a um corte transversal ou sincrónico situado à volta de 1864, uma grande multiplicidade de tendências e gostos, aliás concordante com a diversidade dos depoimentos sobre o Antero coimbrão, prestados no In Memoriam pelos ex-companheiros de Coimbra, mesmo que nesses se desconte uma dose maior ou menor de romanceação pessoal.
Uma das características distintivas do conjunto desta juvenília é a relativa importância dos temas amorosos, que nas fases adultas da sua obra se tornam secundários ou, antes, se perdem no meio de outros, reduzindo-se a anseios ou desilusões em torno das alegorias maiusculadas do Amor e da Mulher. O amor da poesia anteriana jovem evolui de um anelo espiritualizado à Lamartine ou João de Deus (mestre que neste ponto alcança, por vezes, em simplicidade e pureza) para uma harmonia afectiva mais rica, onde certos discretos apelos carnais, a meditação filosófica da própria ansiedade amorosa, e (em Peppa, sobretudo) um misto de pompa salomónica e de ironia lírica, até de sarcasmo, à Heine, emergem à tona de resíduos garrettianos, herculanianos e ultra-românticos.
Este enriquecimento de planos ou modulações afectivas não chega a arrancar a erótica anteriana ao Romantismo sentimental, embora lhe confira incontestável originalidade. Intensa e às vezes dramaticamente apaixonável, ao que nos revelam os amigos, Antero não sente ainda, como lírico, uma plena humanidade feminina: angeliza, infantiliza ou maternaliza sempre a mulher. Vê-a frequentemente, mesmo mais tarde, e logo nos primeiros poemas publicados, como a Beatrice dantesca, Eterno Feminino espiritualizador das inapaziguáveis, fáusticas ansiedades do homem que é; e o soneto À Virgem Santíssima, que neste sentido lembra muito o papel da Virgem no desfecho do Fausto de Goethe, dá forma acabada ao neoplatonismo erótico de Camões, postulando uma como que essência feminil a servir de medianeira entre o humano e o divino. Em mais que uma poesia chegam a fundir-se a imagem maternal, acalentadora, e a imagem pueril, "pequenina", da feminilidade em botão, numa síntese original e estranha, não porque se afaste muito da concepção idealizada do amor entre os nossos românticos, mas porque lhe falta a hipocrisia de uma sensualidade disfarçada, e o que nela se sente é ou certa iconoclastia erótico-religiosa ou o toque sincero de um objecto amoroso inatingível pelo desejo corrente:

Sê, flor, meu universo,
Criança, a minha mãe.

Comparada à poesia da maturidade, a da juventude de Antero deixa-nos a impressão de uma encruzilhada de muitos caminhos, todos aparentemente praticáveis pelos seus dons, e entre os quais se veio a fazer uma opção, mais do que síntese. Com efeito, Raios de Extinta Luz e Primaveras Românticas contêm, além da erótica já referida, composições de um niilismo blasfemo; uma cosmogonia de inspiração bíblica (Fiat Lux); uma imitação em que se detecta o baudelairismo do "aroma irritante e acre do vício", precursor da contrafacção, em 1869, de um poeta "satânico", Carlos Fradique Mendes, na qual participou com Eça e Batalha Reis; quadras para baladas coimbrãs; poesias sobre o tema da transmigração, ligada à matéria, da alma ou sensibilidade dos mortos, que dominará as Prosas Bárbaras de Eça e muito da obra de Gomes Leal; umas Saudades Pagãs, longo poema sobre o tema panteísta, originariamente romântico alemão, do exílio dos deuses, depois inexistente na sua obra e sobretudo na de Eça; a fantasia algo pré-simbolista de Limoeiro Verde ; e o soneto de impressionante desalento Despondency, datado, aliás, de um dos anos de maior combatividade (1864).


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2002 Porto Editora, Lda.

As "Odes Modernas

Se excluirmos uma ou outra composição inserta nas colecções atrás versadas e alguns sonetos, podemos considerar as Odes Modernas como de um género ou de uma inspiração completamente à parte. Já, a propósito da Questão Coimbrã e da biografia espiritual de Antero, apontámos o que há de inovador na sua informação doutrinária. De resto, em Nota à primeira edição, o autor indica o seu alvo, numa linguagem que ecoa, sem dúvida, Proudhon. A seu ver, "a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade", e, portanto, dadas as condições vigentes, "a Poesia moderna é a voz da Revolução". E uma vez que o Progresso atingia todas as manifestações humanas, Antero afirma, intemerato: "Esta voz, se é a mais alta, deve ser também a mais poética". Lido à distância de três ou quatro gerações, e sobretudo em ambiente que não esteja em sintonia como os seus ideais, o livro correspondente a este ambicioso proudhonismo choca pela temeridade de ignorar que os ritmos do progresso nas múltiplas linhas da história humana raro sincronizam; de resto, noutros textos, tanto de 1865 como dos anos 80, Antero liga o progresso da ciência e da Justiça a uma pretensa e iminente superação da música e da poesia. A sua personalidade constitui já um exemplo vivo das desconexões verificáveis entre o pensar e o sentir, ou melhor, entre o pensar poético, o pensar prático e o pensar doutrinário.
A impressão de envelhecimento que as Odes hoje nos causam resulta, em parte, de as apreciarmos sob um critério de leitura muda e individual, que não corresponde à sua inspiração e destino. Deveríamos imaginá-las declamadas a um público receptivo e largo, capaz de vibração imediata ao ouvir exaltar Garibaldi e estigmatizar o farisaísmo burguês, a chacina dos polacos pelas forças do Tsar, dos irlandeses pelos latifundiários britânicos, dos "Communards" pelas tropas de Versalhes que haviam traído a França, etc.. Fora de um tal ambiente dramático de declamação, o que melhor se nos comunica é o íntimo drama representado pelo poeta e que encontra na série de sonetos A Ideia e ainda no soneto isolado Mais Luz!alguns dos tons mais justos. O conflito desenrola-se entre dois apelos diferentes daquela mesma devoção inteira, superadora da individualidade imediata e aburguesada, que Antero sentiu sempre como apelos de santidade: a santidade tradicional, voltada para a transcendência ao humano, e uma santidade nova, revolucionária, constantemente unida no poeta aos símbolos ou emblemas da Razão, da Luz, do Sol. É sobretudo no soneto IV de A Ideia que Antero faz crepitar mais alto a chama heróica de uma Ideia imanente aos homens, vibrando ainda de ter rompido com o transcendentalismo donde partira, e antes de percorrer, na mesma série, a estirada alegoria em que faz noivar o espírito humano com a Ideia, num "lá" não se sabe onde, um "lá", que depois se converte em "cá", o "céu incorruptível da consciência".

Sob inspiração das ciências genéticas, das sínteses históricas de Michelet, das utopias de Proudhon e do modelo poético da Légende des Siècles de Hugo, cuja presença é bem palpável, as Odes traçam os tópicos de uma epopeia do cosmos e da humanidade. Outros moços coimbrãos do tempo tentaram empreendimento semelhante, entre eles Teófilo Braga com a Visão dos Tempos, que se não cansou de ampliar pela vida fora, e o próprio Eça de Queirós, de cujas projectadas Memórias de um Átomo ainda ficou um largo rasto nas Prosas Bárbaras . A tentativa ressente-se de um ideário que não pôde ser vivido até àquelas minúcias quotidianas, até àqueles recessos despercebidos que, num simples traço inintencional, na mais simples evocação de certo uso vocabular, criam a própria carne de um poema. Além disso, mesmo na segunda edição refundida, certas repetições negligentes de metáforas e giros frásicos, certa monotonia mecânica das mesmas séries semânticas de palavras, certa frouxidão mental deixam-nos um gosto de improviso e de imaturidade.
Por outro lado, fica-se judicativamente perplexo perante uma característica, aliás não puramente anteriana, pois vem de Michelet, de Hugo, de Proudhon, do utopismo romântico: o uso metafórico de símbolos religiosos consagrados, que tanto sugere a polémica, a tensão de um rasgar de horizontes, como o meio-termo, o pouco imaginativo ou tímido recurso a odres velhos para o vinho novo. Disso resulta um sabor a mistura discorde, um senso de hibridação infecunda.
Esta tensão e este meio-termo assumem um significado mais denso, se relacionarmos as Odes, e a sua informação cultural estrangeira, com a herança de Herculano. Com efeito, não se podem ler as Odes sem se sentir o jeito de visionar a história como uma procissão de grandes catástrofes civilizacionais, um desabar sucessivo de "tronos, religiões, impérios, usos"; simplesmente, o Eterno deixou de ser o Deus bíblico, para se converter em Ideia, ante a qual, sem excepção, todos os "deuses cambaleiam". As Odes soam, em grande parte, como despedida ao romantismo herculaniano do Passado, "larva macilenta", à "poesia de ruínas", "às saudades, que vêm, como soluços/Do fundo da História!". Mas a grandiloquência mantém-se e com ela um moralismo, afinal já em Herculano contraditoriamente anistórico, e agora transferido à Justiça revolucionária de Proudhon; a palavra-chave desta transferência é o epíteto de santo, atribuído aos símbolos do novo ideário; e a santificação opera-se estilisticamente por alegorias formulares ou oposições do género missa nova da Liberdade, Evangelho Novo da Igualdade, órgão colossal da Revolução, púlpito imanente do peito humano, a cúpula da igreja oposta à do céu infinito, o círio do altar oposto ao sol; isto sem falar nos títulos latinos e nas insinuações de religiosidade naturalista e anticlerical que ressumam de determinações, aliás tão vagas e até contraditórias, como as de "estola", "estrada", "estrada" e até "orla" (sic) do Infinito espacial.


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Os "Sonetos"

É nos Sonetos que encontramos o melhor conjunto da obra poética amadurecida de Antero. Deve-se, como sabemos, a João de Deus a reabilitação dessa forma clássica, "a forma lírica por excelência" no juízo anteriano, molde disciplinador que o primeiro Romantismo desprezara e que se tornaria predilecta de Antero de Quental. Há nisto uma espécie de novo-classicismo, de uma nova discursividade relacionante, demasiado abstracta mas ritmicamente sugestiva, a que não faltam, como sinais de uma tradição rediviva, certos traços camonianos, por exemplo, a concepção dialéctica da realidade e até paráfrases de versos ("Que sempre o mal pior é ter nascido"; "Mas passar entre turbas solitário"), e bocagianos, como certas alegorias, frequentemente maiusculadas, e a obsessão da morte.
O poeta via na série completa dos Sonetos, muitos deles desentranhados de outras colecções já publicadas, um conjunto de marcos da sua própria autobiografia espiritual. Oliveira Martins, no prefácio para a edição dos Sonetos Completos, dividiu-os em cinco fases. A primeira fase, de 1860-62, que vai portanto até aos vinte anos do autor, representa o drama do romper com a sua fé infantil e de uma insatisfação que transborda por sobre os limites das crenças, do amor e da vida vivida. A segunda fase, 1862-66, constituída sobretudo pelos sonetos extraídos das Primaveras Românticas, regista a primeira das suas grandes crises sentimentais e o abatimento da frustração; sem o testemunho das outras poesias deste período, ficaríamos desconhecendo o largo sincretismo das suas tendências juvenis. A terceira fase (melhor se diria o terceiro ciclo, visto que intersecta o período anteriormente indicado) está compreendida entre 1866-74, correspondendo ao decénio de empenhamento combativo: é a fase solar, de hino à razão, onde se incluem produções extractadas das Odes, algumas das quais referimos. A quarta fase, 1874-80, documenta o reinado do pessimismo informado pela metafísica de K. R. E. von Hartmann. Por fim, a quinta e derradeira fase seria a da reconciliação mística.
Não devemos tomar inteiramente à letra a arrumação cronológica feita por Oliveira Martins, apesar de sancionada pelo autor, pois as investigações pacientes de Bruno Carreiro, corroborando análises de Joaquim de Carvalho, revelam que os sonetos À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus estão deslocados: o primeiro é de 1872 e o segundo de 1882, o que muito importa para a compreensão da trajectória mental de Antero, visto que a sua ordem exacta confirma a interpretação, proposta por António Sérgio, de uma permanente coexistência de dois Anteros .

O gosto literário prevalecente nos últimos decénios tornou-se mais severo em relação ao soneto anteriano, anteriormente mais reverenciado do que efectivamente compreendido. E, na verdade, comparando Antero a Gomes Leal, que, de resto, o continua quanto à veia revolucionária, e mesmo ao Eça de Queirós de certas evocações, onde se pode ver autêntica poesia nalguns ritmos livres de prosa aparente, sente-se-lhe o vazio de imagens, flagrantes da experiência mais imediata, e faltam-lhe cambiantes humorais - qualidades tolhidas por uma atenção mais firme ao travejamento conceptual, e sobretudo por um fundo, algo inflexível, de exemplaridade moral, que também lhe não permitiu aceitar o realismo de O Crime do Padre Amaro (na primeira versão), nem assimilar senão uma caricatura de Baudelaire.
O alegorismo ainda bocagiano (e, para além disso, renascentista), que já mencionámos a propósito das personificações maiusculadas, alarga-se a toda a estrutura de um soneto como Tormento do Ideal, O Palácio da Ventura, Hino à Razão, Mors-Amor e muitos outros, acentuando-se frequentemente o artifício do processo com o diálogo e a apóstrofe. O cunho classicizante da adjectivação ressalta do que tem de insensorial, de alatinado ou quinhentista (mesto, gélido , rudo) e da melopeia dos seus emparelhamentos(largo e fundo , pálido e triste).
Mas se é verdade que Antero não soube transmutar-se todo em expressão literária, se é verdade que as suas obras poéticas mais não exprimem que um nível de consciência filosófica sobre uma tonalidade emotiva expressa em termos muito vagos e genéricos, ele não deixa de elevar-nos a um dos cumes da nossa poesia, se inscrevermos os poemas no largo contexto que sobretudo se evidencia pela sua extensa e ímpar epistolografia. Os Sonetos merecem a melhor atenção. Apesar da rima pobre, a partitura dos timbres, das articulações e dos ritmos frásicos compensa sobejamente uma visualidade ausente, ou, por melhor dizer, pardacenta e nebulosa, cingindo ora o entusiasmo libertador do Homem sobre a Terra

Ergue-te, então, na majestade estóica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heróica;
Faze um templo dos muros da cadeia,
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo da luz da tua Ideia!

ora a ansiedade incontível em quaisquer limites e cuja respiração se sente em versos como

É lei de Deus este aspirar imenso (A Santos Valente)
Amar! mas de um amor que tenha vida... (Amor Vivo)
Nuvem, sonho impalpável do desejo... (Ideal)
E deixa-me sonhar a vida inteira... (À Virgem Santíssima)


É preciso atentar na larga construção rítmica de alguns dos sonetos, para compreender o que neles há de perturbantemente comunicativo, apesar da falta de originalidade sob o ponto de vista vocabular, estilístico ou das imagens. Mesmo o que possa parecer já murcho nos Sonetos não impede, nos melhores, uma fluidez capaz de colar-se a certos estados de alma nevoentos, fugazes ou desenganados. Repara-se, quanto a isso, na expressividade dos artigos indefinidos em À Virgem Santíssima, no soluçante abandono de Despondency, que acaba rasgado em reticências, e até no partido rítmico admirável que o poeta extrai desse recurso tão clássico que é o hipérbato a alterar com a ordem frásica directa, em, por exemplo, A Santos Valente .
A influência dos Sonetos é muito sensível em muitos poetas do primeiro quartel do séc. XX, que preferem essa forma métrica prestigiada por Antero.


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A Poesia Metafísica: Antero de Quental

A poesia do quotidiano contrapõe-se uma tendência poética de sentido contrário, dirigida para a resposta às indagações que a consciência do homem formula, desde sempre, entre inquieta, aterrada e esperançosa: "que sou?", "por que sou?", "de onde vim?", "para onde vou?", "que é que vale?", "por que a morte?", etc. Trata-se, como se nota, da poesia metafísica, ou transcendental.

Correspondendo a uma linha de força que remonta à Idade Média, com a cantiga de amor, a poesia de elucubracção existencial permaneceu em Camões e Bocage. No século XIX, afora incidentais ressurgências em Soares de Passos, João de Deus, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, é em Antero de Quental que esse género de poesia encontra o seu mais alto representante. Neste século, continua ainda presente na cosmovisão de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga e outros.

Basta o enunciado dos nomes que compõem o elenco principal de poetas com tendência metafísica, para se verificar que representam o melhor da poesia Portuguesa em sua evolução histórica. Todavia, é paradoxal que o seja, pois o carácter marcadamente confessional e ególatra do lirismo português faria supor o contrário. O fenómeno tem explicação: a poesia metafísica nasceria sempre como uma via de escape à angústia geográfica histórica e cultural em que vive o homem português, encurralado num território diminuto entre o continente europeu e o Oceano Atlântico, a sonhar glórias perdidas no século XVI. Pelas características próprias assumidas pelo movimento realista em Portugal, essa angústia chega ao paroxismo, superando a restante actividade poética e inclusive desrespeitando os postulados positivistas, que subestimavam as cogitações metafísicas e sugeriam uma poesia experimen-tal, a serviço da revolução social em marcha.

Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada (Açores), em 1842. Após os primeiros estudos em sua cidade natal, vai para Coimbra estudar Direito. Em pouco tempo, mercê de sua personalidade superior, ganha prestígio de líder entre os companheiros. A publicação de seus primeiros versos confirma-lhe o renome e insinua-lhe um caminho para o futuro. Em 1865, publica as Odes Modernas, que, juntamente com as Tempestades Sonoras e a Visão dos Tempos, de Teófilo Braga, publicadas no ano anterior, desencadeiam a revolução literária chamada Questão Coimbrã. Formado, vai a Paris tentar por em prática, como tipógrafo, suas ideias socialistas e humanitárias, mas desilude-se e, depois duma rápida viagem a Nova Iorque, regressa a Lisboa, onde entra para o grupo do Cenáculo (1868), e logo se torna o seu mentor. Em 1871, orienta as Conferências do Casino Lisbonense e nelas participa activamente. Nos anos seguintes, procura instalar em Portugal o pensamento socialista, ligando-se a associações operárias e mantendo relações com membros avançados do movimento proletário internacional. Mais uma vez, porém, desengana-se, e afasta-se do convívio social, imerso em seu drama e na meditação das ideias igualitárias que diligenciara concretizar. Nessa mesma altura, entra a sentir os primeiros achaques duma misteriosa moléstia que o acompanhará até o fim dos dias. Após os acontecimentos relacionados com o Ultimatum inglês (1890), Antero renasce para a acção proselítica, filiando-se à "Liga Patriótica do Norte". Todavia, ainda uma vez malogra redondamente. Com isso, o pessimismo em que vive mergulhado desde algum tempo, avoluma-se e atinge o seu máxi-mo., Desalentado, deprimido, sentindo fechadas para si todas as saídas na direcção dum lenitivo para seus males físicos e metafísicos, volta à terra natal como em busca duma derradeira esperança. Em vão: também encontra fechada a porta que o conduziria de regresso aos mitos da infância. Só lhe resta uma, a do suicídio, que comete a 11 de Setembro de 1891, com dois tiros na boca.

Antero cultivou a poesia e a prosa polémica e filosófica. No primeiro caso, temos: Odes Modernas (1865), Primaveras Románticas. Versos dos Vinte Anos (1871), Sonetos Completos (1886), Raios de Extinta Lux (1892). No segundo, seus escritos estão coligidos em três volumes: Prosas (1923, 1926, 1931). Para a compreensão do caso anteriano, ainda possuem interesse as Cartas de Antero de Quental (1921), as Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins (1931) e as Curtas a António de Azevedo Castelo Branco (1942).

Privilegiado, "escolhido" para a realização de grandes obras, enquanto homem e enquanto escritor, Antero viveu toda uma vida torturada no afã inútil de conciliar opostas ideias, não raro nascidas em clima febril, e a acção que Lhes desse razão de existência. Apesar dos gigantescos esforços, o resultado foi nulo, porquanto era essencialmente vocacionado para a contemplação ou para a especulação metafísica, e não para o combate activo. Assim, ao mesmo tempo que revelava alto pendor para o jogo sedentário das ideias, era inepto na tentativa de as por em prática. Além disso, alimentava ideias demasiado utópicas e visionárias e muito acima das possibilidades duma só vida.

É que a Antero faltava uma qualidade (ou defeito): o dogmatismo cego e surdo, próprio dos doutrinadores medíocres ou dos pensadores "iluminados" mística ou racionalmente. Ao con-trário de sectarismo, ia-lhe pelo espírito uma terrível e contínua indecisão, fruto de sua incomum inteligência, sempre a ver as contradições das ideias, as verdades e as não-verdades em permanente choque. Coloca-se exactamente aqui o drama anteriano: querer sem poder, ou querer e não-querer simultaneamente, pois desejava o impossível, o absurdamente perfeito, porque ditado pelo intelecto, mas irrealizável na ordem prática das pré-misisas. Ao mesmo tempo, a imensa curiosidade intelectual de Antero, visionário, continuou pela vida fora fortemente ligado às crenças religiosas de raiz, embora apelasse para a Razão e a inteligência a fim de substituí-Ias por novos credos anti-sentimentais: o elogio do Espírito, que a referida "Nota" às Odes Modernas tão claramente documenta, constituía um invencível paradoxo. Jogado entre a tradição e a revolução, Antero optará pela segunda sem ultrapassar de todo a primeira, ao menos no plano sentimental.

Embora o próprio poeta confesse que as Odes Modernas contem poesia que "além de declamatória e abstracta, por vezes" "é indistinta", a luta por afugentar os sentimentos de base e substituí-los pelas verdades novas, forma o núcleo de seu drama pessoal e a inspiração para o melhor de sua poesia e sua prosa filosófica. Exemplo dela, na primeira metamor-fose da poesia anteriana, é o soneto IV da série A Ideia: "Conquista pois sozinho o teu futuro, / Já que os celestes guias te hão deixado, / Sobre uma terra ignota abandonado, / Homem - proscrito rei - mendigo escuro! // Se não tens que esperar do Céu (tão puro, / Mas tão cruel!) e o coração magoado / Sentes já de ilusões desenganado, / Das ilusões do antigo amor perjuro, // Ergue-te, então, na majestade estóica: / Duma vontade solitária e altiva, / Num esforço supremo de alma heróica: // Faze um templo dos muros da cadeia, / Prendendo a imensidade eterna e viva / No círcu-lo de luz da tua Ideia! ".

Ultrapassada a fase de virulência dos anos de Coimbra, inverte-se sensivelmente a direcção da bússola anteriana: como que desabrochando dentro dele o poeta, antes confundido com o panfletário, Antero inicia uma caminhada de introvertido e torturado, consequência da tentativa fruste de harmonizar os contrários de seu espírito, e contemporânea de seus esforços proselíticos no sentido de instalar e realizar o pensamento socialista em Portugal. Esse mergulho abissal dentro da alma, a procurar o caminho para o equilíbrio interior está primorosamente documentado n’ Os Sonetos Completos, "por acompanhar", no dizer de Antero a Wilhelm Storck, "como a notação dum diário íntimo e sem mais preocupações do que a exactidão das notas dum diário, as fases sucessivas de minha vida intelectual e senti-mental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memó-rias de uma consciência." Dir-se-ia que o modo confesso de escrever poesia ("Fazer versos foi sempre em mim coisa perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei com isso faze-los sempre perfeitamente sinceros.") lhe permitia exteriorizar um profundo conteúdo sentimen-tal e religioso longamente sopitado pela consciência. Espírito essencialmente religioso e educado à católica, é natural que agora lhe fosse despertando a necessidade dum mito para ocupar o lugar daqueles que derrubara na juventude. Deus - ou algo que o valha -, Antero afastara-o como verdade sentimental, e agora procurava-o por via intelectual ou racional. Todo o seu humanitarismo abstracto fazia pressupor alguém a substituir o mito católico pelo mito científico ou filosófico; no fundo, porém, era a mesma coisa. O mais dramático disso tudo é o poeta ter nítida consciência da situação e de pressenti-la irrecorrível, pois é tarde para voltar ao ponto de partida e readquirir a posse da crença sentimental de Deus. Nasce daí um doloroso apelo transcendental: Antero indaga o Céu em busca de resposta, e só encontra o Nada. Ao sentimento dilacerante de que o equilíbrio é já impossível, soma-se agora o duma catastrófica solidão íntima ecoando a profunda mudez cósmica, como se pode ver no "Oceano Nox".

Para desfazer o dualismo interno, abater o negro pessimismo e encontrar uma unidade, Antero só podia contar com a morte, desde cedo transformada em Leitmotiv de sua mundividência desesperada: "Morte! irmã do Amor e da Verdade!", "Morte, irmã coeterna da minha alma!", "Morte, libertadora e inviolável!" Antes, porém, de chegada a hora derradeira e tanto ansiada, Antero se debateu em atrozes dúvidas, inspirado ora no seu humanitarismo romântico e divinatório, ora num pessimismo amargo, de simultânea origem física e psíquica. Seu espírito, alimentado de "caóticas leituras", como confessa na carta autobiográfica, era um heteróclito campo de lutas ideológicas: de um lado, as grandes "verdades" científico-filosóficas bebidas na leitura sobretudo de pensadores alemães; de outro, as velhas crenças da infância e um inapagável temperamento de religioso, dum autentico apóstolo das novas ideias, dum santo, como o chamou Eça de Queirós. Numa das faces, o pessimismo à Schopenhauer, transformado numa frenética análise da sem-razão da vida, da inanidade de todos os esforços por alcançar a felicidade: "Para triste, para dor nasceste". Há sonetos, como "O Palácio da Ventura", que testemunham a inócua luta íntima por atingir um bem inexistente. Na outra face, localizam-se breves ilhas de esperança nos mitos infantis, Deus, a Virgem Maria, a paz no reencontro das "verdades" sentimentais, tranquilizado o coração depois de tanta batalha ociosa.

Mas tais momentos de bem-aventurança são logo sufocados pela consciência e o compromisso com as grandes causas colectivas: repugnava-lhe voltar-se para a contemplação e a solução de seu caso pessoal enquanto não visse o fim de todas as formas de injustiça social, missão para a qual se julgava destinado desde sempre: missão dum revolucionário, isto é, dum santo moderno.
Por isso, é preciso atentar para a errónea disposição dos sonetos anterianos realizada por Oliveira Martins em 1886, pois, colocando no fim os poemas da pacificação em Deus, dá a impressão de que o poeta teria no último lance de sua vida encontrado a paz desejada. Na verdade, alguns desses sonetos foram escritos concomitantemente com outros de sentido oposto.
É que a Antero faltou, quer na aceitação dos mitos religiosos da infância, quer na dos mitos intelectuais da idade madura, o empenho em caminhar numa dada direcção até esgotá-la, ao menos a ver em que dá. Doente da vontade, ansioso sempre de espaço e de liberdade para a concatenação das ideias, aberto a estímulos desencontrados, incapaz de persistir por muito tempo na execução dum programa ou na perseguição duma ideia, Antero é um jogue-te de seus nervos destrambelhados e das contradições íntimas. Por isso, impregnado dum espesso cepticismo, põe-se a duvidar de toda a verdade que não seja hegelianamente dual ou matriz duma contrária. Assim, seduzido precisamente para aquelas ideias que contivessem contradições ou ambivalências, Antero acaba negando os caminhos que se lhe abrem à frente. Uma outra solução possível, a síntese capaz de englobar em unidade as ideias anta-gónicas, ou não a tentou, ou não a encontrou, ou desde logo soube que era mais utópica do que o fervor socialista e reformador. O dilema não encontrava solução por estar demais arraigado; resultado: feitas todas as tentativas, só lhe restava o suicídio. A ele se deu certa-mente acreditando em que alguma luz se lhe acenderia depois, o que confere ao seu gesto mais o carácter heróico que o covarde ou deprimido. O suicídio constituiu para Antero a natural culminância de sua caminhada em busca duma coerência inalcançável senão através dum acto semelhante, que talvez o conduzisse para verdades menos contingentes. Com ele, estava completo seu ciclo poético e humano, e franqueado o lugar único que ocupa na Literatura Portuguesa, onde não há figura alguma, humanamente falando, que se lhe compare.

Sua vida, expressa quase toda ela em poesia, sobretudo nos sonetos, tem uma significação e uma altura que ultrapassam qualquer outra em Portugal e obrigam a um estalão próprio de juízo e reverência.

Ainda falta deter a atenção sobre dois volumes de poemas anterianos: Primaveras Românti-cas (1872) e Raios de Extinta Luz (1892). Do primeiro, trata lucidamente Antero na carta a Wilhelm Storck, dizendo que "contém os meus Juvenília, as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas, e que só em 72 reuniu em volume, justamente com mais alguma coisa posterior, do mesmo carácter e estilo. Talvez a melhor maneira de caracterizar esse volume será dizer em Francês que é du Heine de deuxième qualité". Portanto, típica poesia romântica, inspirada na tradição Portuguesa de Garrett e Herculano, e no Romantismo europeu, sobretudo Francês, e neste, Baudelaire. Com os Raios de Extinta Luz, ocorre idênti-co fenómeno: são poemas escritos entre 1859-1863, sob a égide de Camões, Lamartine, além dos já referidos. Numa e noutra colectânea, estão presentes notas de filosofismo e metafísica, oscilando entre a tradição e a revolução, e contrastando com o lirismo-amoroso platónico e sentimental. Aí reside um dos focos de interesse destas obras: as composições postas de lado e só reunidas em 1872 ou esquecidas até que Teófilo Braga as publicasse logo após a morte de Antero, em 1892, documentam a existência desde cedo daquela dualidade que acompanhará o poeta até o fim dos dias, quase fazendo crer que sua trajectória poética se divide em três fases e não em duas, ou em duas com uma primeira romântico-realista.

A prosa filosófica de Antero (Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Ensaios sobre as Bases Filosóficas da Moral ou Filosofia da Liberdade, O Sentimento de Imortalidade, etc.) constitui a aguda documentação da consciência plena que o poeta tinha de sua dramática luta interior, sinete duma lucidez pode samente forte e perigosa a ponto de o destruir. A poesia que nasce do encontro do poeta e do filósofo é das mais estranhas, única em Língua Portuguesa, porquanto a emoção lírica é substituída pelo pensamento, a sensação pela ideia. Trata-se de poesia-filosófica ou filosofia-poética, e tem o alto mérito dessa dualidade, pois dá origem a uma singular equação dramático-filosófica, pela primeira vez posta em Língua Portuguesa. A Poesia e a Filosofia, nele, não se separam.

E se lembrarmos que Poesia e Filosofia são irmãs, na medida em que o máximo de uma e outra se situa no mesmo plano, apenas focado de modo diverso, a primeira, pela face estética, sentimental, emocional, a segunda, pela face especulativa racional - logo ficará patenteado o valor definitivo da obra poética de Antero. Por isso sua poesia é para sentir e compreender ao mesmo tempo, pois só assim, vendo as duas formas de conhecimento fundidas, é possível entender e julgar Antero de Quental, um dos mais ricos organismos poéticos em Portugal, ao lado de Camões, Bocage e Fernando Pessoa.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Amadis de Gaula

Para terminar o exame da literatura quatrocentista em Portugal, é de todo ponto necessário demorar a atenção sobre o Amadis de Gaula (1508), uma das mais importantes novelas de cavalaria escritas na Península Ibérica, se não a mais importante exceptuando o Dom Quixote, e cuja autoria continua a ser um intricado problema. Quem a escreveu? Em que língua?

Desde cedo, sua paternidade se envolveu de mistério, dando origem a três correntes de opinião:

* a primeira, que ligava a novela à Literatura Francesa, está hoje inteiramente posta de lado;

* a segunda, defende a tese de que sua autoria se deve a um português;

* e a terceira, advoga a tese espanhola.


Militam em favor da tese Portuguesa alguns argumentos, dos quais se apontam os seguintes: Azurara, em sua Crónica do Conde D. Pedro de Meneses (1454, 1. I, cap. G3), refere o nome de Vasco da Lobeira, tido por um dos autores da obra, juntamente com João de Lobeira; nos Poemas Lusitanos (1598), de António Ferreira, incluem-se dois sonetos alusivos ao episódio de Briolanja, personagem do Amadis (1. I, cap. 4U), o qual, por sua vez, interessa pelas recusas de Amadis às solicitações da donzela, por fidelidade a Oriana, apesar da interferência de D. Afonso, irmão de D. Dinis, em favor da solicitante; o lais dedicado a Leonoreta, inserto no Amadis, escrito em Português, teria sido composto por João de Lobeira, trovador do tempo de Afonso III e de D. Dinis; assim sendo, o trovador teria escrito também os dois livros iniciais da novela, a que mais tarde Vasco da Lobeira teria acrescentado o terceiro, o que explicaria ter-lhe Azurara mencionado o nome.

Fundamentam a tese espanhola os seguintes argumentos: a primeira edição da novela é de 1508, em Espanhol, feita por Garci-Ordónez de Montalvo, que lhe teria acrescentado o 4 ° livro e emendado os anteriores; as mais remotas referências à novela se devem a autores espanhóis, como a do Canciller Ayala em seu Rimado de Palacio (cerca de 1380) ; no século XIV, Pedro Fernís, poeta do Cancioneiro de Baena, refere o Amadis em 3 livros; no século XV, é mencionado por vários escritores espanhóis.

Não há, porém, argumentos cabais que permitam decidir acerca das duas teses citadas. Falta ainda encontrar qualquer prova mais concludente para dar por solucionado o problema, se bem que alguns pormenores internos façam pender a balança para o lado português, como foi notado inclusive por espanhóis, dentre os quais Menéndez Pelayo (Orígenes de la Novela, vol. I, págs. 345-6). Todavia, há pouco tempo se encontrou motivo suficiente para considerar o problema em definitivo resolvido, ou seja, "existe um fragmento do romance na nossa língua, do século XIII ou XIV, no arquivo dum aristocrata castelhano residente em Madrid". "Está, creio bem, desde agora, encerrada a velha questão do Amadis de Gaula (...) Podemos portanto dizer que as duas mais altas expressões do génio literário galego-português são o Amadis de Gaega e Os Lusíadas; e talvez não seja por mero acaso que essas duas obras-primas, surgidas com intervalo de três séculos, tenham como autores dois portugueses de origem galega: João Lobeira e Luís de Camões".

A novela, reeditada várias vezes e continuada ao longo do século XVI, formando o ciclo dos Amadises, em 12 livros, filia-se ao longínquo trovadorismo amoroso. Amadis é um perfeito cavaleiro-amante e sentimental, vivendo em plena atmosfera do "serviço" cortes, caracterizado pela dedicação constante e obsessiva à bem-amada, a fim de lhe conseguir os favores. esse traço francamente medieval é equilibrado com frequente tendência sensualista. Dessa forma, ao platonismo amoroso se junta "um grande e mortal desejo" que incendeia o par de enamorados: Amadis e Oriana. É uma nota de primitivismo erótico, vulcânico e inebriante, desobediente a leis ou a convenções sociais e morais.

O cavaleiro humaniza-se, terreniza-se, a ponto de, no livro 4 ° (tão diferente dos demais, pelo entrecho, pobre e monótono, e pelo estilo, cheio de "agudezas" forçadas ), casar-se sacra mentalmente para convalidar a antiga relação amorosa com Oriana. Nascem daí certos conflitos no espírito de Amadis, não os padronizados pela tradição mas os dum homem complexo, denso psicologicamente, "moderno" o homem medieval começava a dar vez ao homem concebido segundo os valores renascentistas, que então iniciavam sua invasão de modo franco e definitivo. Amadis anuncia o surgimento do herói moderno, de largo curso e influência no século XV e no XVI, servindo de verdadeiro elo de ligação entre um mundo que morria, a Idade Média, e outro que principiava a despontar, a Renascença.

O ciclo dos Amadises compõe-se dos seguintes livros, todos em Castelhano: Sergas de Esplandián (1510), escrito por Garci-Ordóííez de Montalvo; Florisando (1510), por Páez de Rive ra; Lisuarte de Grecia (1514), por Feliciano de Silva; Lisuarte de Grecia (1526), por Juan Díaz; Amadís de Grecia (1530), por Feliciano de Silva; Florisel de Niquea (1532), pelo mesmo autor; Florisel de Niquea (1535 e 1551), pelo mesmo autor; Silves de Ia Selva (1546), pelo mesmo autor.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo