quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Viagens na Minha Terra

O hibridismo de géneros que nas Viagens se verifica não pode deixar de condicionar os conteúdos temáticos que ao longo da viagem se vão explanando. O nível diegético, dominado pelo relato da viagem, não se esgota na mera descrição de uma paisagem que se desenrola perante um viajante; empreendendo outras «viagens» favorecidas pelas digressões que elabora, o narrador contempla um amplo leque de áreas temáticas. Uma das mais relevantes e culturalmente prementes é a que diz respeito à Literatura, em diversos aspectos da sua existência sociocultural.(...)

Ao chegar à estalagem da Azambuja, o narrador interroga-se sobre uma questão crucial: como descrever a estalagem, numa época afectada por certos estereótipos românticos. (...) Impelido pelas modas românticas, o narrador poderia limitar-se a repetir clichés que o seu leitor decerto bem conhecia: as personagens dos Mystéres de Paris, de E. Sue (o Chourineur, a Fleur de Marie), os seus tiques característicos (a agressividade excessiva em contraste com a pieguice que ressuma daquela «roseirinha pequenina, bonitinha, que morreu, coitadinha», tudo isto seria suficiente para satisfazer as expectativas de um imaginário colectivo deformado pelo melodramático; só que tudo isto seria o contrário daquilo que o narrador declara, usando uma ironia que justamente afirma o inverso do que aparenta: uma estalagem descrita pelo registo do verdadeiro e do natural que o século (romântico) não respeita.

Ora do que aqui se trata é precisamente de sublinhar, contra os excessos de certo Romantismo, as qualidades do verdadeiro como critério de representação artística; por isso, o narrador cita Boileau, assim reafirmando a pertinência e a vitalidade cultural de princípios clássicos que os excessos do Romantismo aconselhavam a recuperar.

Para além, portanto, de reconhecer a dinâmica irrefreável da evolução literária (a superação de uns períodos literários por outros, a estabilização e saturação do que antes se afirmava como inovação, a necessidade de ultrapassar o que se encontra estagnado), a reflexão sobre a Literatura e o Romantismo centra-se numa questão específica: a que diz respeito à criação literária como prática discursiva, quer dizer, como activação de códigos e signos literários que concretizam uma comunicação literária socialmente enquadrada.

O cap. V das Viagens é reconhecidamente aquele em que esta questão é analisada de forma mais aguda. Trata-se de novo de uma descrição: a do pinhal da Azambuja; e trata-se, mais uma vez, de denunciar a importação de temas e personagens provindas de literaturas estrangeiras, em detrimento de uma observação centrada no princípio da verdade artística. Por isso o narrador recorre, ainda aqui (e agora de forma mais desenvolvida), à ironia como instrumento crítico.(...)

O que se explica e «aconselha» é a construção do romance e do drama de acordo com estereótipos estafados (uma ou duas damas, um pai nobre ou ignóbil, um monstro, etc.) que, justamente porque o eram, não podiam já surpreender um público acomodado a tais estereótipos, inteiramente esvaziados de novidade. E isto não podia, naturalmente, deixar de conduzir àquele que é talvez o aspecto decisivo desta mordaz reflexão sobre certa criação literária romântica: a denúncia, sempre em registo irónico, da falta de originalidade. (...)

Em função da mordacidade destes juízos críticos, cabe agora perguntar: como é possível ler as Viagens à luz dos valores do Romantismo, se nelas se patenteiam tais reticências à criação literária romântica? A resposta a esta questão terá necessariamente que ter em conta não apenas outras alusões ao Romantismo que no texto se encontram, mas também a configuração da obra, em termos muito genéricos, e, a partir daí, as concepções culturais do seu autor. (...)

Não está em causa o Romantismo em bloco, mas sim «o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra», o que o narrador recusa, pois, é identificar-se com um Romantismo abastardado, aparentemente degradado pela vulgarização de temas, situações e atitudes emocionais tornadas artificiais e, desse modo, susceptíveis de se imporem como obrigação de escola. Ora é justamente uma concepção normativa da criação artística que nas Viagens é inequivocamente rejeitada, quando o narrador declara: «Eu nem em princípios nem em fins tenho escola a que esteja sujeito». E semelhante recusa não pode senão remeter directamente para um posicionamento tipicamente romântico: a radical afirmação de independência e total liberdade criativa, afirmação por vezes enunciada, em contexto romântico, com esse misto de vaidade e desassombro que encontramos, por exemplo, no Garrett que escreve o Camões e o seu prófogo.

Decorrendo, pois, de uma atitude autenticamente romântica, as críticas formuladas aos vícios de certo Romantismo (no fundo, aquele que se ia aproximando do que entre nós foi o Ultra-Romantismo) não afectam os diversos aspectos em que nas Viagens precisamente se reconhece uma condição de obra

Carlos Reis, Introdução à leitura das "Viagens na Minha Terra"

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