quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Amadis de Gaula

Para terminar o exame da literatura quatrocentista em Portugal, é de todo ponto necessário demorar a atenção sobre o Amadis de Gaula (1508), uma das mais importantes novelas de cavalaria escritas na Península Ibérica, se não a mais importante exceptuando o Dom Quixote, e cuja autoria continua a ser um intricado problema. Quem a escreveu? Em que língua?

Desde cedo, sua paternidade se envolveu de mistério, dando origem a três correntes de opinião:

* a primeira, que ligava a novela à Literatura Francesa, está hoje inteiramente posta de lado;

* a segunda, defende a tese de que sua autoria se deve a um português;

* e a terceira, advoga a tese espanhola.


Militam em favor da tese Portuguesa alguns argumentos, dos quais se apontam os seguintes: Azurara, em sua Crónica do Conde D. Pedro de Meneses (1454, 1. I, cap. G3), refere o nome de Vasco da Lobeira, tido por um dos autores da obra, juntamente com João de Lobeira; nos Poemas Lusitanos (1598), de António Ferreira, incluem-se dois sonetos alusivos ao episódio de Briolanja, personagem do Amadis (1. I, cap. 4U), o qual, por sua vez, interessa pelas recusas de Amadis às solicitações da donzela, por fidelidade a Oriana, apesar da interferência de D. Afonso, irmão de D. Dinis, em favor da solicitante; o lais dedicado a Leonoreta, inserto no Amadis, escrito em Português, teria sido composto por João de Lobeira, trovador do tempo de Afonso III e de D. Dinis; assim sendo, o trovador teria escrito também os dois livros iniciais da novela, a que mais tarde Vasco da Lobeira teria acrescentado o terceiro, o que explicaria ter-lhe Azurara mencionado o nome.

Fundamentam a tese espanhola os seguintes argumentos: a primeira edição da novela é de 1508, em Espanhol, feita por Garci-Ordónez de Montalvo, que lhe teria acrescentado o 4 ° livro e emendado os anteriores; as mais remotas referências à novela se devem a autores espanhóis, como a do Canciller Ayala em seu Rimado de Palacio (cerca de 1380) ; no século XIV, Pedro Fernís, poeta do Cancioneiro de Baena, refere o Amadis em 3 livros; no século XV, é mencionado por vários escritores espanhóis.

Não há, porém, argumentos cabais que permitam decidir acerca das duas teses citadas. Falta ainda encontrar qualquer prova mais concludente para dar por solucionado o problema, se bem que alguns pormenores internos façam pender a balança para o lado português, como foi notado inclusive por espanhóis, dentre os quais Menéndez Pelayo (Orígenes de la Novela, vol. I, págs. 345-6). Todavia, há pouco tempo se encontrou motivo suficiente para considerar o problema em definitivo resolvido, ou seja, "existe um fragmento do romance na nossa língua, do século XIII ou XIV, no arquivo dum aristocrata castelhano residente em Madrid". "Está, creio bem, desde agora, encerrada a velha questão do Amadis de Gaula (...) Podemos portanto dizer que as duas mais altas expressões do génio literário galego-português são o Amadis de Gaega e Os Lusíadas; e talvez não seja por mero acaso que essas duas obras-primas, surgidas com intervalo de três séculos, tenham como autores dois portugueses de origem galega: João Lobeira e Luís de Camões".

A novela, reeditada várias vezes e continuada ao longo do século XVI, formando o ciclo dos Amadises, em 12 livros, filia-se ao longínquo trovadorismo amoroso. Amadis é um perfeito cavaleiro-amante e sentimental, vivendo em plena atmosfera do "serviço" cortes, caracterizado pela dedicação constante e obsessiva à bem-amada, a fim de lhe conseguir os favores. esse traço francamente medieval é equilibrado com frequente tendência sensualista. Dessa forma, ao platonismo amoroso se junta "um grande e mortal desejo" que incendeia o par de enamorados: Amadis e Oriana. É uma nota de primitivismo erótico, vulcânico e inebriante, desobediente a leis ou a convenções sociais e morais.

O cavaleiro humaniza-se, terreniza-se, a ponto de, no livro 4 ° (tão diferente dos demais, pelo entrecho, pobre e monótono, e pelo estilo, cheio de "agudezas" forçadas ), casar-se sacra mentalmente para convalidar a antiga relação amorosa com Oriana. Nascem daí certos conflitos no espírito de Amadis, não os padronizados pela tradição mas os dum homem complexo, denso psicologicamente, "moderno" o homem medieval começava a dar vez ao homem concebido segundo os valores renascentistas, que então iniciavam sua invasão de modo franco e definitivo. Amadis anuncia o surgimento do herói moderno, de largo curso e influência no século XV e no XVI, servindo de verdadeiro elo de ligação entre um mundo que morria, a Idade Média, e outro que principiava a despontar, a Renascença.

O ciclo dos Amadises compõe-se dos seguintes livros, todos em Castelhano: Sergas de Esplandián (1510), escrito por Garci-Ordóííez de Montalvo; Florisando (1510), por Páez de Rive ra; Lisuarte de Grecia (1514), por Feliciano de Silva; Lisuarte de Grecia (1526), por Juan Díaz; Amadís de Grecia (1530), por Feliciano de Silva; Florisel de Niquea (1532), pelo mesmo autor; Florisel de Niquea (1535 e 1551), pelo mesmo autor; Silves de Ia Selva (1546), pelo mesmo autor.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

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