quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Maturação literária de Garrett

Quando em 1823 chegou a Inglaterra e entrou a conviver com uma família inglesa, Garrett foi fascinado por este mundo novo. Estava em moda a evocação da Idade Média, das ruínas góticas, do folclore. Walter Scott, ainda vivo, publicara já os seus poemas narrativos de assunto medieval, os seus romances históricos e os seus Cantos da fronteira escocesa (1802-1803). Continuavam a ler-se os famosos cantos de Ossian, o suposto bardo celta engendrado pela fantasia de Macpherson. É curioso como no prefácio de Adozinda (1828) Garrett alegoriza a musa romântica (curiosamente, a alegoria integra-se na retórica arcádica), emoldurada em motivos típicos da nova escola:

"a mesma selvática, ingénua e caprichosa virgem das montanhas que se apraz nas solidões incultas, que vai pelos campos alumiados do pálido reflexo da lua, envolta em véus de transparente alvura, folga no espaço e na incerteza das cores indistintas, que nem oculta nem patenteia o astro da noite; a mesma beldade misteriosa que frequenta as ruínas do castelo abandonado, da torre deserta, no claustro coberto de hera e musgo, e folga de cantar suas endechas desgarradas à boca de cavernas fadadas, por noite morta e horas aziagas".

Torna-se também grande admirador de Byron, o cantor da rebeldia contra as convenções sociais, que eleva a grandiosas proporções satânicas o seu inconformismo, em longos poemas narrativos a extravasar de tédio ou insaciedade, de confissões pessoais e de gosto pelo exotismo. Imitou o gesto teatral, mas manteve-se imune ao vírus mais iconoclasta deste autor.
Data da estadia em Inglaterra o projecto de levar à prática uma "literatura nacional", entendendo por isso uma literatura inspirada em tradições locais respigadas no folclore e nos textos anteriores à introdução do Classicismo - projecto que passou a ser um norte constante da actividade literária de Garrett:

"O que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as legendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas [...]. O tom e o espírito verdadeiro português, esse é forçoso estudá-lo no grande livro nacional que é o povo, e as suas tradições e as suas virtudes, e os seus vícios e os seus erros."


O primeiro volume do Romanceiro, onde se lêem as palavras transcritas e onde se citam a cada passo os Contos da fronteira escocesa de Scott, data de 1843; mas já em 1825 Garrett anda em busca de rimances populares; e em 1827, um ano depois do regresso de Inglaterra, é publicada a Adozinda, inspirada, como os poemas de Scott, em um destes rimances. A sua actividade como compilador e estudioso da literatura folclórica é também posterior à dos irmãos Grimm (Lendas alemãs, 1816-18), mas contemporânea da do duque de Rivas, cuja carreira tem muitas analogias com a de Garrett, e da de Agustín Durán, cujo Romancero General foi editado onze anos antes do português.
As primeiras obras publicadas por Garrett depois da sua iniciação inglesa são Camões (1825) e D. Branca (1826).
Em Camões, com um assunto que inspirara já também um quadro de Sequeira e uma composição musical de Domingos Bontempo, viu Garrett a história de um desterrado, como ele próprio e como tantos liberais seus companheiros, que no regresso assiste às desgraças da pátria e morre com ela, incompreendido e perseguido pela sociedade. Os passos mais vibrantes são a invocação da Saudade, aliás ainda tratada como alegoria mitológica no começo do poema; a paráfrase de um salmo de Job, que a liturgia faz cantar no Ofício dos mortos; e o lamento fúnebre entoado por Camões sobre a sepultura de Natércia. Em todo o poema domina um tom de elegia lutuosa, e são reconhecíveis temas do romantismo europeu, de Rousseau, Byron e outros (bondade natural humana recalcada pela civilização; individualismo insociável; etc.), e outros temas de uma espécie de pré-romantismo nacional latente (saudosismo; soidão bernardiniana e camoniana; etc.). Mal se pode dizer que no poema decorra uma acção, pois os seus protagonistas, como espectros, quase só monologam. O desfecho dá o diapasão da desesperança do emigrado que não entrevê horizontes:

E já no arranco extremo. " - Pátria, ao menos,
juntos morremos..." E expirou coa Pátria.

Costuma datar-se desta obra a introdução do Romantismo em Portugal. Trata-se, com efeito, de um poema narrativo em torno de um herói com algo de byroniano; as descrições conformam-se com o cenário romântico vago e nocturno; as entidades mitológicas são, de maneira geral, abolidas ou nacionalizadas. Mas o verso branco em que está vazado tem sabor arcádico, e multiplicam-se as imitações e decalques d' Os Lusíadas, especialmente nos cantos VII e VIII. No prefácio, o autor afirma o seu portuguesismo e declara não ser clássico, nem romântico, repudiando, tanto as regras de Aristóteles e Horácio, como a imitação de Byron, pretendendo apenas e eclecticamente seguir "o coração e os sentimentos da natureza". O Camões vive do seu patriotismo de exilado e de algumas expansões elegíacas, e revela em Garrett sobretudo um apreciável talento de imitador.
O mesmo se patenteia na D. Branca, redigida contemporaneamente, história em verso de uma infanta portuguesa raptada pelo último rei mouro de Silves. O autor introduziu-lhe vários ingredientes típicos: o exótico oriental; o maravilhoso folclórico português de fadas, mouras encantadas, magia da noite de S. João, etc.; a tradição da feitiçaria medieval, representada por S. Frei Gil, espécie de Fausto português; a intervenção de cadáveres e esqueletos, segundo o gosto de Buerger, Schiller e outros. Procurou, em suma, uma acumulação dos elementos exteriores do Romantismo. Por outro lado, o poema é um flagrante aportuguesamento do Oberon do pré-romântico alemão Wieland, através provavelmente da tradução que dele dera Filinto Elísio e que Garrett conhecia já anos atrás. Consciente de todo este esforço de arranjo "romântico", Garrett abre o poema pela célebre abjuração, à Chateaubriand, dos "áureos numes de Ascreu" (Hesíodo de Ascra, cuja Teogonia é o principal repositório literário da mitologia grega):

Tuas aras profanas renuncio:
professei outra fé, sigo outro rito
e para novo altar meus hinos canto.


No entanto, marcas estilísticas arcádicas abundam nestes versos, embora por vezes parodiadas, como no processo da formação de adjectivos justapostos ("gordo-cachaci-pançudo bernardo"). O leitor é impressionado pela artificialidade deste embrechado de mosaicos, rebuscados no capricho de obter um efeito. Sobressai certo tom anticlerical e faceto, uma das veias de Garrett, também de tradição arcádica (sobretudo filintista).
No entanto Garrett conservou da sua iniciação na nova literatura inglesa uma ideia produtiva, que será o seu principal contributo para o Romantismo português: a literatura culta não deve perder o contacto com a poesia popular e com as formas populares de expressão. "A literatura, dirá ele mais tarde numa nota ao Frei Luís de Sousa, é filha da terra como os Titãs da fábula, e à terra se deve deitar para ganhar forças novas quando se sente exausta". Alguns anos passarão ainda antes que Garrett realize uma parte deste programa, cuja trave mestra fica à vista com a publicação do Romanceiro Português .
Publica em 1849 o 1.o vol. e em 1850 (18 caps.) o 2.o volume de O Arco de Sant'Ana, pretensamente iniciado durante o cerca de 1832 e dedicado ao seu comandante de então. Apesar dos documentos finais e de alguma cor (mais local que épocal), os figurantes e cenas são assumidamente os contemporâneos; além de um D. Pedro I que evoca D. Pedro IV a castigar o bispo há uma paródia, em reunião da Câmara, à retórica parlamentar, e o historicismo é denunciado em prefácio como veículo da reacção clerical. O protagonista é (sem dúvida) um aristocrata em revolta contra o pai (o bispo). Salvam-se uma protagonista cheia de gana, Aninhas, um comprazido quadro de três beldades e a descrição de uma procissão por barco até à margem esquerda - além de certa leveza de traço.


In História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.





Publicada por Helena Maria em 06:12
Etiquetas: Almeida Garrett
A formação arcádica de Garrett
Ao contrário do que acontece com Herculano, mais novo, que se formou directamente numa estética romântica de origem alemã, da qual foi em Portugal aliás o primeiro doutrinário, o jovem Garrett apenas parece ter assimilado o cristianismo sentimental de Chateaubriand e o relativismo histórico e nacional teorizado por M.me Staël, integrando-os numa concepção de vida e arte basicamente arcádica e iluminista; a sua evolução em sentido romântico faz-se de um modo gradual e contrapesado por eclectismos teóricos ou estilísticos. Familiarizou-se com os poetas latinos, principalmente com Horácio; leu, através de traduções, clássicos gregos, e directamente a tragédia clássica francesa (Racine, Corneille, Voltaire) e, mais do que esta, a italiana (Alfieri, Maffei); educou também o gosto com os clássicos quinhentistas portugueses, sobretudo Camões e Ferreira. De entre os contemporâneos foi, de início, sobretudo, discípulo de Filinto Elísio. Nas composições juvenis reunidas, em parte (porque o autor só deixou escapar algumas que lhe pareceram mais capazes de afrontar a publicidade), sob o título modesto de Lírica de João Mínimo (1.a edição 1829), e nas Fábulas (editadas em 1835 no Livro II dos Versos), constituídas por odes e outras composições em género clássico, Filinto não só é imitado mas apontado como modelo.
Esta formação arcádica e iluminista, já, como vimos, algo matizada, constitui um sedimento profundo na personalidade literária de Garrett, a tal ponto que se torna difícil indicar na sua carreira uma linha definitiva de corte, quer de estrutura, quer de consciência teorética, embora a transformação a que serviu de guia nem por isso seja menos evidente. Assim, e com excepção das tardias Folhas Caídas, todas as suas obras se mantêm mais ou menos fiéis a uma responsabilidade de intervenção cívica ou de derramamento de luzes. Todavia, logo desde 1823 as ponderações de oportunidade e de exequibilidade política vieram atenuar um idealismo extremo que, contra o próprio Vintismo, tomara imediato partido pela independência do Brasil e, em vários textos (como a incompleta tragédia Afonso de Albuquerque, 1819), condenara indignadamente as pretensões civilizadoras e cristianizadoras da Europa à custa da liberdade dos outros continentes. A sua última ode cívica foi aquela que em 1829 dedicou a A Vitória da Praia, porque, declaradamente, deixou logo a seguir de crer em toda a pureza dos seus ideais juvenis.
Mantém-se em toda a sua obra um conflito, aberto ou latente, entre a ideia cristã de pecado original e um erotismo que através da sua carreira assumirá os estilos, ou máscaras, mais diversos, sem nunca deixar de ser a seu modo sagrado, no mais fundo e ambivalente (angélico ou demoníaco) significado desta palavra. De início, assistimos à simbiose iluminista e libertina entre Prazer, Virtude, Razão e Liberdade, por vezes mitificadamente maiusculados e sem artigo: "Virtude sem prazer não é Virtude". Esta matéria vaza-se, ora em amplas odes doutrinárias, ora em pequenos moldes de tradição hedonística anacreôntica, com ambientes de galante bucólica ou anedota rococó; e terá o seu natural prolongamento em prosas de jornalismo amavelmente didáctico para as damas com que, sobretudo em O Toucador, 1822, e O Cronista, 1827, procura reagir contra a falta de ar livre, de larga convivência cultural da mulher portuguesa. O Retrato de Vénus representa o cume deste hino à "alegre natureza" (personificada num perfeito e desinibido corpo de mulher), fonte de todo o prazer e protótipo de toda a beleza da arte, em progresso indefinido de uma "grande cadeia de seres", resultantes das forças (como que newtonianas) de universal atracção, de afinidade química, instintiva, erótica e social. Mas paralelamente, e por forma cada vez mais acentuada, são os tiranos das tragédias filosóficas (Lucrécia, Mérope) e depois os celerados de Adozinda, Bernal Francês e Arco de Sant'Ana que motivam imagens de sensualidade intensas embora cada vez mais cobertas de velaturas moralizantes e cristãmente contritas. O tema do rapto e (ou) da sedução anima um poema juvenil, O Roubo das Sabinas, transparece em D. Branca, em termos exaltatórios de uma religião natural onde o Prazer se liga à Virtude viril sem dogmas. Em certos textos grotescos, entre os quais se destaca uma novela picaresca incompleta, Memórias de João Coradinho, Garrett atreve-se com uma bastante maior crueza à denúncia dos instintos pervertidos por uma sociedade injusta e repressiva. Mas entretanto, desde Camões e D. Branca até Frei Luís de Sousa e à lírica final, ganha terreno um contratema caracteristicamente romântico, e que o próprio Garrett chasqueara em Os Namorados Extravagantes, paródia juvenil de Os Bandidos de Schiller e suas numerosas imitações: o amor aparece progressivamente incompatível, ou incomensurável, com a ordem natural, devido a um qualquer pecado primevo. Evidentemente, é tão difícil discernir o ingrediente de autêntica liberdade hedonística nos eufemismos da erótica anacreôntica ou rococó, como reconhecer até que ponto as moralizações e os remorsos não figuram, mais tarde, como simples condimento do sabor erótico. O problema virá a repor-se a propósito da novela de Camilo.
Ainda mais romântico e mais fundamente garrettiano é o sentimento de instabilidade passional, de tédio no conseguimento, de universal desapontamento quase à Byron, que aliás se liga, desde cedo, com vacilações dos ideais adolescentes, com dúvidas acerca do mérito, da exequibilidade, da seriedade das aspirações iluministas e liberais, através da sua trajectória política extremamente sinuosa, cada vez mais céptica e conformada. A angústia de um coração que se não fixa e em breve se sacia percorre muitas das suas obras e esboços literários, encontrando, como veremos, a sua expressão mais acabada em Viagens na Minha Terra .
A gradatividade da evolução garrettiana é ainda mais inquestionável no plano das concepções teóricas, onde ele procura ressalvar uma certa continuidade de ideias acima da própria prática literária, e um eclectismo que só é possível manter à custa de certas deslocações de acento tónico entre as várias tendências concorrentes. A própria importância dada por Chateaubriand, M.me Staël e Hugo, por exemplo, ao cunho moderno, e implicitamente cristão, da poética romântica, a relativização, não menos romântica, das "índoles" nacionais, permitem a Garrett uma fidelidade permanente ao postulado clássico da arte como imitação da natureza (ou, mais aristotelicamente, dos costumes). Quando muito, assiste-se, em teoria, a uma ênfase crescente do sentimento, da intuição subjectiva (num sentido mais nacional ou moderno do que pessoal), neste extrovertido apaixonado pela pintura e pelo espectáculo, que faz teatro ou oratória da própria lírica, e que nunca renega das leis da natureza, reconhecidas pela razão, e até pelo simples bom senso, a partir dos cinco sentidos. Herculano é que se oporá a este credo da imitação, ou mimese, do sensível, em nome de uma estética romântica germânica do símbolo visionário sobrenatural, ao passo que Garrett tende, embora oscilantemente, para a naturalidade, a verdade comum de todos os dias.
No prefácio da Lírica de João Mínimo, Horácio e seus imitadores, que "fazem odes com senso comum", são cotados a par dos "prosélitos da escola de Gessner, em que tudo é natureza e verdadeira imitação dela"; e ambos se oporiam frontalmente à "antiga escola Marino-gongorístico-ítalo-castelhana que resistira aos esforços de Garção e Dinis", que "lutou com Filinto e filintistas", e com os "restauradores das simplicidades camõesinas e mirandinas". De um lado estão, pois, os gongóricos, que revivem nos "elmanistas"; do outro lado, os discípulos de Horácio, Garção, Dinis e Filinto, juntamente com os autores "a que chamam românticos". Aqueles censuram nos seus contrários o "chamarem à noite noite, ao sol sol, e a todas as coisas pelo seu nome". Dir-se-ia, portanto, que Garrett não encontra uma diferença radical entre Românticos e Árcades. Para ele a questão é entre Árcades e Gongóricos; entre o bom senso, o equilíbrio, a verdade - e o barroco, que Bocage, segundo Garrett, tentara ressuscitar. Ainda no mesmo prefácio, Garrett resume o que chama o seu "credo poético nacional". O primeiro ponto dele, tipicamente arcádico, é o estudo e a imitação criteriosa dos poetas quinhentistas e setecentistas, rejeitando portanto os seiscentistas e os "ultra-elmanistas" e "ultrafilintistas" da escola arcádica decadente. O segundo ponto diz respeito à imitação dos poetas estrangeiros, que deve ser feita comedidamente e nacionalizando-os. Quanto às "escolas diversas", o porta-voz de Garrett (João Mínimo) pergunta: "Que quer dizer horacianos, filintistas, elmanistas, e ultimamente clássicos e românticos? Quer dizer tolice e asneira sistemática debaixo de diversos nomes". E, assim, não haveria razão para excluir da imitação nenhum estilo: Horácio é modelo que se impõe para as odes de certo tipo, Bocage para sone

Capítulo II - ALMEIDA GARRETT


tos ou epigramas, Filinto para "sublimes raptos líricos". Se o assunto for clássico, é pelos modelos clássicos que o poeta deve afinar a lira, mas, se for moderno e nacional, não pode deixar de ser tratado segundo o "género romântico". No prefácio do Catão, 1.a edição, o "romântico" é concebido como um "género" ao lado do clássico, e de um terceiro género formado pela combinação destes, concepção que se encontra também em M.me de Staël. Estas ideias são de 1822, mas o autor afirma-se-lhes fiel num "post-scriptum" de 1839. Encontramo-las ainda, de maneira implícita, na Memória lida ao Conservatório em 1843 como introdução ao Frei Luís de Sousa .
A obra produzida por Garrett anteriormente à sua primeira emigração romântica não oferece extraordinário interesse ao leitor actual. Dificilmente se lêem hoje as odes da Lírica de João Mínimo, que não excedem o nível das produções arcádicas (Cruz e Silva, Garção, Filinto, Bocage, etc.). Quanto à produção teatral, o próprio Garrett ressalvou o Catão do geral esquecimento a que votou as suas tragédias clássicas, escritas, em parte, para os teatros académicos de Coimbra.

O Catão tem pouca originalidade: é decalcado no Bruto Secondo, de Alfieri, de que aproveitou situações, ideias e o tom geral, e contém, por outro lado, alguns trechos traduzidos livremente do Catão de Addison. A celebridade desta obra na época explica-se pela sua colagem ao estado de espírito da juventude liberal portuguesa de 1820, e, posteriormente, dos emigrados em Inglaterra. O escol revolucionário era em grande parte constituído por juristas formados no Direito Romano, que viam nos magistrados da República Romana os protótipos das virtudes cívicas. As Cortes Constituintes reviam-se na majestade do Senado que Garrett punha a deliberar no palco, à imitação de Alfieri; Catão representava a primazia da lei (forma jurídica da "Razão") sobre o poder pessoal, representado por César. Mas não se formulava a concepção de soberania popular: Catão é moralmente superior a César, mas também superior às turbas, que reduz à obediência. A razão não se identifica, segundo Garrett, com a vontade das maiorias; e o Catão contém uma crítica implícita à ideologia de Rousseau (crítica desenvolvida, aliás, numa nota à peça). As personagens são inteiriças, excepto Bruto, minado por uma espécie de complexo de Édipo (a fatalidade fê-lo filho adoptivo de César e obriga-o a lavar essa mancha com o sangue do próprio pai); a acção encontra-se fora dos protagonistas, e falta um conflito central. Mais do que isso: o entrecho aparece ilógico, pois Catão antes de se suicidar convence os companheiros a salvarem a vida para poderem continuar a luta. Na reedição londrina de 1830, Garrett retoma esta tragédia, acentuando os seus traços sentimentais e o seu pessimismo.


In História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora

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