quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A Epistolografia

Durante o século XVII, a epistolografia ganhou fisionomia literária autónoma. Não se trata a epístola em verso, tão remota quanto Horácio, seu criador, mas da carta viva, em prosa, com função específica de informar acerca da vida pessoal ou alheia, e fazer comentários, a modo de Crónica ou reportagem da vida diária. Embora desde o Renascimento já se tenham cartas desse tipo (por exemplo, as cinco de Camões e as nove de Jerónimo Osório, intituladas Cartas Portuguesas), é só no decurso do Barroco que elas aparecem numa profusão e numa categoria poucas vezes atingidas, antes ou depois.
O grande modelo no tempo é Madame de Sévigné, com seus oito volumes de Lettres, escritas a partir de 1671 e apenas publicadas no século XVIII. No caso, a carta faz as vezes do jornal, então ainda raro mesmo nas mais adiantadas metrópoles europeias. É fácil compreender que aos poucos a carta se foi tornando exercício literário, chegando até a prescindir de destinatário certo; o epistológrafo imaginava um qualquer ou dirigia-se a uma audiência fictícia.
A moda foi seguida em Portugal por uma série de escritores de nomeada, e os quais o Padre António Vieira, D. Francisco Manuel de o, Frei António das Chagas, Cavaleiro de Oliveira e, de modo muito especial, Sóror Mariana Alcoforado.





SOROR MARIANA ALCOFORADO
Nasceu em Beja, em 1640. Cedo professa no Convento de Nossa Senhora da Conceição em sua cidade natal. Em 1663, conhece Chamilly, oficial Francês servindo em Portugal durante
as guerras da Restauracção. Enamoram-se. Um dia, porém, o militar regressa à França impelido por chamado superior. Está-se em 1667. Teriam trocado cartas, das quais só ficaram as escritas pela religiosa, que falece em 1723 após longa e dolorosa penitência.
Em 1669, publicam-se, em Paris, pela primeira vez, as Lettres Portugaises traduites en français, sem declarar o nome do destinatário e o tradutor. Naquele mesmo ano, sai nova edição em Colonia, com o título de Lettres d'Amour d'une religieuse écrites au Chevalier de C., Officier Français en Portugal, declarando quem era o seu destinatário e o seu tradutor: o primeiro, Chevalier de Chamilly, o segundo, Guilleragues. No texto das cartas vinha o nome da remetente: Mariana. Dali para a frente, foram lidas e traduzidas em várias línguas, sempre com progressivo interesse. Em 1810, Filinto Elísio pô-las em vernáculo.
O problema que as cinco cartas de amor levantam não parece de todo resolvido, tal o volume das conjecturas e indagações: aceita a autoria da freira de Beja, quantas cartas te riam sido enviadas? cinco ou mais, ou menos? em que língua? se em Português, o tradutor não as teria alterado como bem lhe aprouvesse? ou, mesmo, não as teria refundido, quem sabe escrevendo algumas delas? os originais, onde param? quanto à ordem das cartas, não seria arbitrária, arranjada?
De qualquer modo, é fora de dúvida que as cinco cartas amorosas possuem real importância e interesse. E, não obstante certos preciosismos que poderiam ser postos na conta do tradutor, seu tonus identifica-se perfeitamente com a índole literária Portuguesa. Perpassa-as um violento sopro de paixão incontrolada, insana, superior a todas as inibições e convenções e a todo impulso da vontade e da consciência moral. Paixão que não amor, pois o sentimento expresso contém na raiz um avassalador ímpeto carnal, explicável inclusive pela atmosfera barroca em que o caso amoroso se desenrola. Realmente digno de nota, por sua altitude e invulgaridade, o facto de conterem as cartas a sincera, franca e escaldante confissão duma mulher que se desnuda interiormente para o amante cínico, ingrato e ausente, com fúria de fêmea abandonada, sem qualquer rebuço ou pudor. Ao longo das missivas, a epistológrafa mergulha cada vez mais num jogo dilemático, paradoxal, como pede a típica psicologia feminina e a própria essência do Barroco: de um lado, a ânsia de esquecer definitivamente o perjuro, pois não merece mais que desprezo e indiferença - é o aspecto racional; de outro, a súplica que nasce do mais fundo de si própria, visceral, para que ele volte ou ao menos escreva, a fim de que permaneçam os tormentos agridoces provocados por sua lembrança ao mesmo tempo desejada e odiada - é o aspecto sentimental, carnal. Essa bipolaridade existe em todas as cartas e quase de linha a linha a Sóror Mariana muda de atitude: "Tua injustiça e ingratidão são demais. Mas ficava desesperada se disso te proviesse qualquer dano, pois antes quero que não recebas castigos, do que ver-me eu vingada. Resisto a todas as mostras que em demasia me convencem de que me não estimas já, e sinto mais vontade de entregar-me cegamente à paixão do que às razões que me dás de me lamentar do teu pouco caso."
Claro, a linha evolutiva terminará pela solução natural, fruto do bom senso vitorioso ou do cansaço de esperar e lutar em vão. A autenticidade da confissão, o surpreendente poder de ex pressão do turbilhonante caos interior feito de apelos desencontrados, a ausência de qualquer trava moral, o ar de paganismo anterior aos preconceitos e convenções a exprimir o impulso primário dos sentidos, a tensão dramática e eloquente que a missivista imprime às suas confissões - são algumas das notas novas e ainda vivas das Cinco Cartas de Amor.
Escritas por uma mulher, que alcança dizer com rara precisão os seus transes íntimos (via de regra mantidos ocultos ou disfarçados pelo comum das mulheres), as Cartas ganham Maior relevo ainda como documento "humano" e literário precisamente porque não visavam à publicação nem a ser encaradas como peça literária: cresse-se, contudo, a contribuição do tradutor Francês. Por todo seu conteúdo e a forma de comunicação, as Cartas são obra sem igual, e em nosso idioma é preciso aguardar o aparecimento de Florbela Espanca, no século XX, para que uma voz de angústia passional se erga tão alto e tão dolorosamente arranque da carne a confissão amorosa logo transformada em sonetos de primeira grandeza. Embora
distanciadas no tempo e vivendo situações amorosas específicas, a epistológrafa e a poetisa assemelham-se no estadeamento ilimitado dum sentimento erótico mais poderoso que a vida e a morte.
As Cartas de Amor da Sóror Mariana Alcoforado constituem um dos pontos altos do Barroco português: numa época de prosa "dirigida" e poesia preciosa, tornam-se, com o teatro de António José da Silva, breves ilhas de sol e espontaneidade. Largamente lidas no século XVIII - decerto porque continham ingredientes psicológicos agradáveis à nova sensibilidade que se ia formando -, tiveram o condão de colaborar na preparação do movimento romântico.
Dispostas da forma como se apresentam, as Cartas descrevem uma curva senóide cujo ápice é marcado pela terceira carta: ali o sofrimento atinge o limite máximo, graças a uma concentração irrepetível de efeitos e sensações, apoiada numa linguagem precisa, concisa, ao mesmo tempo que suficientemente plástica para apreender o ziguezague da paradoxal confissão.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

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