quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Antero e a prosa doutrinal do seu tempo

Além de poeta, Antero foi o nosso pensador especulativo do séc. XIX mais dotado de qualidades expositivas; ele próprio se reconhecia com o dom da prosa, o dom de subsumir num movimento de largo fôlego e de sóbria mas persuasiva dignidade todo o conjunto de razões e contra-razões enoveladas num problema geral. Pelo tom austero de moralista, pela seriedade que não quebra nunca, o seu estilo é ainda, mesmo na epistolografia conhecida, o de um orador romântico, mas com a plasticidade capaz de, sobretudo nas cartas, transformar em inovação rítmica, em incidente vivificador do discurso, uma hesitação no termo próprio, uma oportuna citação latina ou de língua estrangeira, um tropeço emotivo, uma busca de solução ao discorrer encetado. Esta qualidade oratória, com os seus períodos amplos sem prolixidade, deriva talvez um pouco de Herculano, mas elimina a afectação visionária e profética do precursor; a prosa anteriana pode, neste particular, apontar-se como um modelo, entre nós excepcional, de indiferença pela sugestão imaginífica ou humoral, de atenção, e mais que atenção, de amor pelos problemas como problemas. Quaisquer que sejam os seus erros ou ambiguidades, aprende-se, efectivamente, com a sua prosa a dignificar o exercício superior da razão.
Em contraste com Garrett, Eça ou Ramalho, o discurso de Antero ignora as subtilezas alusivas da ironia, recurso de imaginativos que não quadrava aos seus ideais, insatisfeitos, de personalidade que se quer racional e praticamente inteiriça; em contraste com Oliveira Martins, falta-lhe o poder de improvisação esquematizadora, a assimilação imediata de uma nova concepção histórica ou sociológica aos casos nacionais concretos, mas sobra-lhe precisão, busca de coerência e uma disciplina que (em prosa) não confunde ideias com alegorias ou personificações. Os testemunhos do In Memoriam que coincidem em apontar o seu escrúpulo autocrítico, o impulso imperioso de proclamar um erro próprio, verificam-se, por exemplo, considerando o rápido progresso que vai da iconoclastia ainda irreflectida, por vezes, do folheto Bom Senso e Bom Gosto, com as suas oposições simplificadoras, o seu exibicionismo de nomes, até ao folheto sobre A Dignidade das Letras, posterior de poucos meses, manifesto sóbrio e amadurecido de uma literatura portuguesa que se quer realista e se responsabiliza pelos destinos de um povo.
Sob o ponto de vista doutrinário, além de conceber uma nova responsabilização social do escritor e de repensar a história dando-lhe um novo sentido programático à luz das melhores esperanças europeias de 1865-74, Antero assimilou a dialéctica hegeliana, o humanitarismo francês e outras correntes do seu tempo, e, quaisquer que sejam as suas inconsistências, fez a melhor crítica nacional ao positivismo que, por volta de 1880, e até bem entrado o século XX, se tornou a corrente dominante da nossa opinião filosófica.

Com efeito, o positivismo, mais ou menos ligado a tendências materialistas mecanistas, evolucionistas (ou, mais vagamente, monistas), vindas quer de Comte e seus discípulos Littré, Herbert Spencer, quer do empirista Stuart Mill, quer dos monistas Haeckel e Buechner, inspirou homens de prestígio, como Teófilo Braga, já o vimos, Emídio Garcia (1838-1904), Júlio de Matos (1856-1922), Teixeira Bastos (1857-1902); forneceu critérios de acção política republicana, transvazou para o verso, tendia quase a constituir-se numa espécie de religião laica em Portugal e no Brasil. Claro que a crítica anteriana apresenta algumas feições históricas discutíveis. Sob esse aspecto, pode, dentro de um âmbito nacional, situar-se na linha de uma reacção anti-iluminista de que se descortinaram antecedentes em Herculano e, sob aspectos mais restritamente doutrinários, em Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Este último prolonga por inícios do séc. XIX o eclectismo dos Oratorianos entre Aristóteles e Locke, e daí chega ao espiritualismo, também no fundo ecléctico, de Leibniz, depois redescoberto por Antero.
É de notar a coincidente inspiração também leibniziana de Pedro de Amorim Viana (1822-1901), lente da Escola Politécnica do Porto, que se debruçou igualmente sobre Proudhon e sobre a crítica bíblica, de modo mais percuciente embora menos elegante do que Antero, e cuja Defesa da fé ou análise do racionalismo (1866) desenvolve as premissas metafísicas do seu mestre seiscentista em sentidos várias vezes convergentes com os de Antero: conciliação do determinismo com o finalismo moral, repúdio do sobrenaturalismo (embora declarando-se católico). O seu esforço de racionalizar a religião e de a adequar ao progresso científico e social conduziu-o, em 1852, a uma curiosa polémica com Camilo Castelo Branco, cujas posteriores tendências deístas já, aliás, conhecemos.
Contra o positivismo e também contra o racionalismo leibniziano, nomeadamente na exposição de Amorim Viana, reage mais tarde o polígrafo portuense José Pereira Sampaio (1857-1915), mais conhecido por Sampaio Bruno, republicano conspirador do 31 de Janeiro, cujos méritos principais são os de uma curiosidade infatigável, uma vasta informação (conquanto de um autodidactismo prolixo), uma grande finura na dilucidação de certos pontos concretos, incluindo, como já vimos, de teoria e crítica literária. Uma corrente posterior, tendente a propugnar a especificidade de uma "filosofia portuguesa", faz de Sampaio Bruno um dos seus luminares; mas, sob o ponto de vista filosófico, o que o caracteriza, depois de em O Brasil Mental (1898) ter voltado as suas baterias contra o positivismo, também muito radicado em terra brasileira e com que ele próprio tivera afinidades, é uma espécie de metafísica-mito de um Progresso inspirado por emanações da Divindade, tida como imperfeita (depois da Criação), mas emanações exercidas sob a forma de concepções cientificamente racionais, avessa aos sebastianismos tradicionais portugueses e a outros messianismos (A Ideia de Deus, 1902; O Encoberto, 1904). Esta metafísica, que tem aspectos heterogéneos (incluindo positivistas comtianos, como a rejeição do cálculo das probabilidades), atribui uma função à dor e ao mal (concebido aliás dialecticamente, como motor do progresso), ideia também insistente nas elucubrações literárias de Junqueiro, Pascoaes, Raul Brandão, Pessoa e de muitos outros escritores de início do séc. XX. O seu principal ponto de partida é o da fé científico-racional de Amorim Viana, a quem essencialmente critica o não-reconhecimento da realidade do mal, que é para Bruno a evidência da imperfeição de Deus, de uma sua incompletude que o progresso humano estava destinado a suprir.
Na crítica do positivismo, cujos principais representantes nomeámos, devem ainda mencionar-se, embora já não importem à ficção literária, José Maria da Cunha Seixas (1836-1895): A Fénix (1870), Sena Freitas (1840-1913: A Doutrina Positivista, 1875), Domingos Tarroso (n. 1860: Filosofia da Existência, 1881), Manuel de Ferreira Deusdado (1860-1918: Ensaios de Filosofia Actual, 1888) e o franciscanista Jaime de Magalhães Lima (1859-1936).


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

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