quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A Poesia Metafísica: Antero de Quental

A poesia do quotidiano contrapõe-se uma tendência poética de sentido contrário, dirigida para a resposta às indagações que a consciência do homem formula, desde sempre, entre inquieta, aterrada e esperançosa: "que sou?", "por que sou?", "de onde vim?", "para onde vou?", "que é que vale?", "por que a morte?", etc. Trata-se, como se nota, da poesia metafísica, ou transcendental.

Correspondendo a uma linha de força que remonta à Idade Média, com a cantiga de amor, a poesia de elucubracção existencial permaneceu em Camões e Bocage. No século XIX, afora incidentais ressurgências em Soares de Passos, João de Deus, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, é em Antero de Quental que esse género de poesia encontra o seu mais alto representante. Neste século, continua ainda presente na cosmovisão de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga e outros.

Basta o enunciado dos nomes que compõem o elenco principal de poetas com tendência metafísica, para se verificar que representam o melhor da poesia Portuguesa em sua evolução histórica. Todavia, é paradoxal que o seja, pois o carácter marcadamente confessional e ególatra do lirismo português faria supor o contrário. O fenómeno tem explicação: a poesia metafísica nasceria sempre como uma via de escape à angústia geográfica histórica e cultural em que vive o homem português, encurralado num território diminuto entre o continente europeu e o Oceano Atlântico, a sonhar glórias perdidas no século XVI. Pelas características próprias assumidas pelo movimento realista em Portugal, essa angústia chega ao paroxismo, superando a restante actividade poética e inclusive desrespeitando os postulados positivistas, que subestimavam as cogitações metafísicas e sugeriam uma poesia experimen-tal, a serviço da revolução social em marcha.

Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada (Açores), em 1842. Após os primeiros estudos em sua cidade natal, vai para Coimbra estudar Direito. Em pouco tempo, mercê de sua personalidade superior, ganha prestígio de líder entre os companheiros. A publicação de seus primeiros versos confirma-lhe o renome e insinua-lhe um caminho para o futuro. Em 1865, publica as Odes Modernas, que, juntamente com as Tempestades Sonoras e a Visão dos Tempos, de Teófilo Braga, publicadas no ano anterior, desencadeiam a revolução literária chamada Questão Coimbrã. Formado, vai a Paris tentar por em prática, como tipógrafo, suas ideias socialistas e humanitárias, mas desilude-se e, depois duma rápida viagem a Nova Iorque, regressa a Lisboa, onde entra para o grupo do Cenáculo (1868), e logo se torna o seu mentor. Em 1871, orienta as Conferências do Casino Lisbonense e nelas participa activamente. Nos anos seguintes, procura instalar em Portugal o pensamento socialista, ligando-se a associações operárias e mantendo relações com membros avançados do movimento proletário internacional. Mais uma vez, porém, desengana-se, e afasta-se do convívio social, imerso em seu drama e na meditação das ideias igualitárias que diligenciara concretizar. Nessa mesma altura, entra a sentir os primeiros achaques duma misteriosa moléstia que o acompanhará até o fim dos dias. Após os acontecimentos relacionados com o Ultimatum inglês (1890), Antero renasce para a acção proselítica, filiando-se à "Liga Patriótica do Norte". Todavia, ainda uma vez malogra redondamente. Com isso, o pessimismo em que vive mergulhado desde algum tempo, avoluma-se e atinge o seu máxi-mo., Desalentado, deprimido, sentindo fechadas para si todas as saídas na direcção dum lenitivo para seus males físicos e metafísicos, volta à terra natal como em busca duma derradeira esperança. Em vão: também encontra fechada a porta que o conduziria de regresso aos mitos da infância. Só lhe resta uma, a do suicídio, que comete a 11 de Setembro de 1891, com dois tiros na boca.

Antero cultivou a poesia e a prosa polémica e filosófica. No primeiro caso, temos: Odes Modernas (1865), Primaveras Románticas. Versos dos Vinte Anos (1871), Sonetos Completos (1886), Raios de Extinta Lux (1892). No segundo, seus escritos estão coligidos em três volumes: Prosas (1923, 1926, 1931). Para a compreensão do caso anteriano, ainda possuem interesse as Cartas de Antero de Quental (1921), as Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins (1931) e as Curtas a António de Azevedo Castelo Branco (1942).

Privilegiado, "escolhido" para a realização de grandes obras, enquanto homem e enquanto escritor, Antero viveu toda uma vida torturada no afã inútil de conciliar opostas ideias, não raro nascidas em clima febril, e a acção que Lhes desse razão de existência. Apesar dos gigantescos esforços, o resultado foi nulo, porquanto era essencialmente vocacionado para a contemplação ou para a especulação metafísica, e não para o combate activo. Assim, ao mesmo tempo que revelava alto pendor para o jogo sedentário das ideias, era inepto na tentativa de as por em prática. Além disso, alimentava ideias demasiado utópicas e visionárias e muito acima das possibilidades duma só vida.

É que a Antero faltava uma qualidade (ou defeito): o dogmatismo cego e surdo, próprio dos doutrinadores medíocres ou dos pensadores "iluminados" mística ou racionalmente. Ao con-trário de sectarismo, ia-lhe pelo espírito uma terrível e contínua indecisão, fruto de sua incomum inteligência, sempre a ver as contradições das ideias, as verdades e as não-verdades em permanente choque. Coloca-se exactamente aqui o drama anteriano: querer sem poder, ou querer e não-querer simultaneamente, pois desejava o impossível, o absurdamente perfeito, porque ditado pelo intelecto, mas irrealizável na ordem prática das pré-misisas. Ao mesmo tempo, a imensa curiosidade intelectual de Antero, visionário, continuou pela vida fora fortemente ligado às crenças religiosas de raiz, embora apelasse para a Razão e a inteligência a fim de substituí-Ias por novos credos anti-sentimentais: o elogio do Espírito, que a referida "Nota" às Odes Modernas tão claramente documenta, constituía um invencível paradoxo. Jogado entre a tradição e a revolução, Antero optará pela segunda sem ultrapassar de todo a primeira, ao menos no plano sentimental.

Embora o próprio poeta confesse que as Odes Modernas contem poesia que "além de declamatória e abstracta, por vezes" "é indistinta", a luta por afugentar os sentimentos de base e substituí-los pelas verdades novas, forma o núcleo de seu drama pessoal e a inspiração para o melhor de sua poesia e sua prosa filosófica. Exemplo dela, na primeira metamor-fose da poesia anteriana, é o soneto IV da série A Ideia: "Conquista pois sozinho o teu futuro, / Já que os celestes guias te hão deixado, / Sobre uma terra ignota abandonado, / Homem - proscrito rei - mendigo escuro! // Se não tens que esperar do Céu (tão puro, / Mas tão cruel!) e o coração magoado / Sentes já de ilusões desenganado, / Das ilusões do antigo amor perjuro, // Ergue-te, então, na majestade estóica: / Duma vontade solitária e altiva, / Num esforço supremo de alma heróica: // Faze um templo dos muros da cadeia, / Prendendo a imensidade eterna e viva / No círcu-lo de luz da tua Ideia! ".

Ultrapassada a fase de virulência dos anos de Coimbra, inverte-se sensivelmente a direcção da bússola anteriana: como que desabrochando dentro dele o poeta, antes confundido com o panfletário, Antero inicia uma caminhada de introvertido e torturado, consequência da tentativa fruste de harmonizar os contrários de seu espírito, e contemporânea de seus esforços proselíticos no sentido de instalar e realizar o pensamento socialista em Portugal. Esse mergulho abissal dentro da alma, a procurar o caminho para o equilíbrio interior está primorosamente documentado n’ Os Sonetos Completos, "por acompanhar", no dizer de Antero a Wilhelm Storck, "como a notação dum diário íntimo e sem mais preocupações do que a exactidão das notas dum diário, as fases sucessivas de minha vida intelectual e senti-mental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memó-rias de uma consciência." Dir-se-ia que o modo confesso de escrever poesia ("Fazer versos foi sempre em mim coisa perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei com isso faze-los sempre perfeitamente sinceros.") lhe permitia exteriorizar um profundo conteúdo sentimen-tal e religioso longamente sopitado pela consciência. Espírito essencialmente religioso e educado à católica, é natural que agora lhe fosse despertando a necessidade dum mito para ocupar o lugar daqueles que derrubara na juventude. Deus - ou algo que o valha -, Antero afastara-o como verdade sentimental, e agora procurava-o por via intelectual ou racional. Todo o seu humanitarismo abstracto fazia pressupor alguém a substituir o mito católico pelo mito científico ou filosófico; no fundo, porém, era a mesma coisa. O mais dramático disso tudo é o poeta ter nítida consciência da situação e de pressenti-la irrecorrível, pois é tarde para voltar ao ponto de partida e readquirir a posse da crença sentimental de Deus. Nasce daí um doloroso apelo transcendental: Antero indaga o Céu em busca de resposta, e só encontra o Nada. Ao sentimento dilacerante de que o equilíbrio é já impossível, soma-se agora o duma catastrófica solidão íntima ecoando a profunda mudez cósmica, como se pode ver no "Oceano Nox".

Para desfazer o dualismo interno, abater o negro pessimismo e encontrar uma unidade, Antero só podia contar com a morte, desde cedo transformada em Leitmotiv de sua mundividência desesperada: "Morte! irmã do Amor e da Verdade!", "Morte, irmã coeterna da minha alma!", "Morte, libertadora e inviolável!" Antes, porém, de chegada a hora derradeira e tanto ansiada, Antero se debateu em atrozes dúvidas, inspirado ora no seu humanitarismo romântico e divinatório, ora num pessimismo amargo, de simultânea origem física e psíquica. Seu espírito, alimentado de "caóticas leituras", como confessa na carta autobiográfica, era um heteróclito campo de lutas ideológicas: de um lado, as grandes "verdades" científico-filosóficas bebidas na leitura sobretudo de pensadores alemães; de outro, as velhas crenças da infância e um inapagável temperamento de religioso, dum autentico apóstolo das novas ideias, dum santo, como o chamou Eça de Queirós. Numa das faces, o pessimismo à Schopenhauer, transformado numa frenética análise da sem-razão da vida, da inanidade de todos os esforços por alcançar a felicidade: "Para triste, para dor nasceste". Há sonetos, como "O Palácio da Ventura", que testemunham a inócua luta íntima por atingir um bem inexistente. Na outra face, localizam-se breves ilhas de esperança nos mitos infantis, Deus, a Virgem Maria, a paz no reencontro das "verdades" sentimentais, tranquilizado o coração depois de tanta batalha ociosa.

Mas tais momentos de bem-aventurança são logo sufocados pela consciência e o compromisso com as grandes causas colectivas: repugnava-lhe voltar-se para a contemplação e a solução de seu caso pessoal enquanto não visse o fim de todas as formas de injustiça social, missão para a qual se julgava destinado desde sempre: missão dum revolucionário, isto é, dum santo moderno.
Por isso, é preciso atentar para a errónea disposição dos sonetos anterianos realizada por Oliveira Martins em 1886, pois, colocando no fim os poemas da pacificação em Deus, dá a impressão de que o poeta teria no último lance de sua vida encontrado a paz desejada. Na verdade, alguns desses sonetos foram escritos concomitantemente com outros de sentido oposto.
É que a Antero faltou, quer na aceitação dos mitos religiosos da infância, quer na dos mitos intelectuais da idade madura, o empenho em caminhar numa dada direcção até esgotá-la, ao menos a ver em que dá. Doente da vontade, ansioso sempre de espaço e de liberdade para a concatenação das ideias, aberto a estímulos desencontrados, incapaz de persistir por muito tempo na execução dum programa ou na perseguição duma ideia, Antero é um jogue-te de seus nervos destrambelhados e das contradições íntimas. Por isso, impregnado dum espesso cepticismo, põe-se a duvidar de toda a verdade que não seja hegelianamente dual ou matriz duma contrária. Assim, seduzido precisamente para aquelas ideias que contivessem contradições ou ambivalências, Antero acaba negando os caminhos que se lhe abrem à frente. Uma outra solução possível, a síntese capaz de englobar em unidade as ideias anta-gónicas, ou não a tentou, ou não a encontrou, ou desde logo soube que era mais utópica do que o fervor socialista e reformador. O dilema não encontrava solução por estar demais arraigado; resultado: feitas todas as tentativas, só lhe restava o suicídio. A ele se deu certa-mente acreditando em que alguma luz se lhe acenderia depois, o que confere ao seu gesto mais o carácter heróico que o covarde ou deprimido. O suicídio constituiu para Antero a natural culminância de sua caminhada em busca duma coerência inalcançável senão através dum acto semelhante, que talvez o conduzisse para verdades menos contingentes. Com ele, estava completo seu ciclo poético e humano, e franqueado o lugar único que ocupa na Literatura Portuguesa, onde não há figura alguma, humanamente falando, que se lhe compare.

Sua vida, expressa quase toda ela em poesia, sobretudo nos sonetos, tem uma significação e uma altura que ultrapassam qualquer outra em Portugal e obrigam a um estalão próprio de juízo e reverência.

Ainda falta deter a atenção sobre dois volumes de poemas anterianos: Primaveras Românti-cas (1872) e Raios de Extinta Luz (1892). Do primeiro, trata lucidamente Antero na carta a Wilhelm Storck, dizendo que "contém os meus Juvenília, as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas, e que só em 72 reuniu em volume, justamente com mais alguma coisa posterior, do mesmo carácter e estilo. Talvez a melhor maneira de caracterizar esse volume será dizer em Francês que é du Heine de deuxième qualité". Portanto, típica poesia romântica, inspirada na tradição Portuguesa de Garrett e Herculano, e no Romantismo europeu, sobretudo Francês, e neste, Baudelaire. Com os Raios de Extinta Luz, ocorre idênti-co fenómeno: são poemas escritos entre 1859-1863, sob a égide de Camões, Lamartine, além dos já referidos. Numa e noutra colectânea, estão presentes notas de filosofismo e metafísica, oscilando entre a tradição e a revolução, e contrastando com o lirismo-amoroso platónico e sentimental. Aí reside um dos focos de interesse destas obras: as composições postas de lado e só reunidas em 1872 ou esquecidas até que Teófilo Braga as publicasse logo após a morte de Antero, em 1892, documentam a existência desde cedo daquela dualidade que acompanhará o poeta até o fim dos dias, quase fazendo crer que sua trajectória poética se divide em três fases e não em duas, ou em duas com uma primeira romântico-realista.

A prosa filosófica de Antero (Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Ensaios sobre as Bases Filosóficas da Moral ou Filosofia da Liberdade, O Sentimento de Imortalidade, etc.) constitui a aguda documentação da consciência plena que o poeta tinha de sua dramática luta interior, sinete duma lucidez pode samente forte e perigosa a ponto de o destruir. A poesia que nasce do encontro do poeta e do filósofo é das mais estranhas, única em Língua Portuguesa, porquanto a emoção lírica é substituída pelo pensamento, a sensação pela ideia. Trata-se de poesia-filosófica ou filosofia-poética, e tem o alto mérito dessa dualidade, pois dá origem a uma singular equação dramático-filosófica, pela primeira vez posta em Língua Portuguesa. A Poesia e a Filosofia, nele, não se separam.

E se lembrarmos que Poesia e Filosofia são irmãs, na medida em que o máximo de uma e outra se situa no mesmo plano, apenas focado de modo diverso, a primeira, pela face estética, sentimental, emocional, a segunda, pela face especulativa racional - logo ficará patenteado o valor definitivo da obra poética de Antero. Por isso sua poesia é para sentir e compreender ao mesmo tempo, pois só assim, vendo as duas formas de conhecimento fundidas, é possível entender e julgar Antero de Quental, um dos mais ricos organismos poéticos em Portugal, ao lado de Camões, Bocage e Fernando Pessoa.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Um comentário:

Luís disse...

Que análise incrível. Muito obrigado por ter partilhado!