quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A novela de Garrett

Não falando em Helena, obra incompleta e publicada postumamente, onde, num cenário de pitoresco romântico da selva brasileira, já incuba, em moldes byronianos, o dandismo queirosiano de Fradique Mendes, Garrett deixou-nos duas novelas, uma delas histórica, O Arco de Sant'Ana, outra contemporânea, a novela inserta nas Viagens na Minha Terra, ambas precedidas de várias tentativas congéneres que revelam uma predilecção já antiga, em Garrett, quer pelo romanesco histórico inspirado por Fernão Lopes, quer pela novela testemunhal do seu íntimo desgarre de sentimentos. Muito diferentes quanto à forma e intenção, oferecem, no entanto, uma arquitectura romanesca comparável: n' O Arco de Sant'Ana, o herói, Vasco, é, sem o saber, filho ilegítimo de um bispo que lhe abusara da mãe (uma judia), e os acontecimentos decorrem de maneira que o pai, senhor feudal do Porto, e o filho, chefe de uma revolta popular, vêm a encontrar-se frente a frente, a combater em partidos opostos; só no momento em que está prestes a matá-lo, o filho reconhece o pai. Nas Viagens, o herói, Carlos, é também, sem o saber, filho de um frade que fez a desgraça de sua mãe e de sua família; o mesmo antagonismo político e social separa o filho, combatente liberal, e o pai, monge, dando-se em circunstâncias semelhantes o final reconhecimento. Esta situação dramática, que também se nos depara no Catão entre Bruto e César, parece ser imagem obsessiva de uma situação histórica, e talvez também biográfica. O liberalismo triunfou em Portugal através de uma guerra civil que dividiu muitas famílias, inclusive a de Garrett.

Em ambos os romances, mas principalmente nas Viagens, a camada verbal do estilo é notável por um aproximação da língua falada que, no entanto, não deixa de ser literária, isto é, conscientemente artística. Já no prefácio da Lírica de João Mínimo (1828) Garrett nos dera uma amostra deste esforço para libertar a língua literária dos padrões da prosa clerical e cortês. Procurou o vocábulo mais corrente e familiar, actualizando-o com estrangeirismos (coquete do francês, desapontado, sofisticado, do inglês) e procurando reavivar certos arcaísmos (soidão). Deu novas funções literárias às reticências, aos anacolutos e a outras propositadas negligências gramaticais, às aliterações e rimas na prosa, ao período curto e elíptico, e, em geral, a um aparentemente espontâneo, caprichoso ritmo frásico:

"Os olhos, os olhos... - disse eu, pensando já alto e todo em êxtase - os olhos... pretos. - Pois eram verdes!"

Por vezes, a frase digressiva envereda por uma ramificação secundária e perde de vista o pensamento inicial. Este sacrifício do encadeamento lógico, mais formular, à associação viva das ideias, juntamente com certo tom familiar, explica talvez a admiração de Garrett por Bernardim. Escrevendo como se falasse alto, Garrett suspende-se por vezes e pergunta "Onde ia eu?", para voltar ao fio quebrado das suas considerações. Isto não o impede, todavia, de recorrer também, embora afinadamente, ao estilo declamatório próprio dos Românticos.
É possível rastrear em Garrett certos vaivéns de um estilo que, por um lado, se apoia no vernáculo latinizante dos árcades e de Filinto Elísio, e por outro lado, atravessando o lugar-comum romântico, preludia a mais organizada, concentrada mas também mais formular ironia queirosiana; o significado íntimo da ironia de Eça, o seu cepticismo dandy, já de resto se acusa nas fracturas e no cepticismo íntimos de certas personagens e de certas confissões garrettianas. O prosador das Viagens, do Arco de Sant'Ana, como o poeta de Folhas Caídas, neste ponto sentimentalmente romântico, abandona a racionalidade fixista do iluminismo arcádico e redescobre as contradições petrarquistas do sentimento, mas desta vez a um nível de confidência pessoal, ou mesmo da vibração sexual. Isso pode exemplificar-se na invocação à Saudade do Camões e noutras poesias posteriores, como Gozo e Dor, que não é difícil aproximar, respectivamente, da bernardiniana teórica das saudades de F. Manuel de Melo e dos enlanguescimentos eróticos de Bocage ou Anastácio da Cunha. Mas, por outro lado, e naquilo em que já preparara Eça de Queirós, o estilo garrettiano reencontra os melhores achados do humor quase britânico de Tolentino, como quando, por exemplo, emparelha no mesmo grupo de adjectivos ou de outras expressões determinativas o aspecto físico e o aspecto moral, ou dois quaisquer aspectos aparentemente díspares de uma mesma coisa ou pessoa (barão verdadeiro e puro-sangue; desapontamento chapado e solene; o branco importuno das louras e o branco terso, duro, marmóreo das ruivas; um barco sério e sisudo; substancial e benfazeja traquitana). Este tipo de qualificação ou determinação tem o seu precursor remoto no paradoxo petrarquista, de Camões por exemplo, mas presta atenção a uma variedade de planos de percepção e de experiência em geral que, anteriormente, só Tolentino entre nós soubera conjugar. Eça de Queirós virá a amadurecer o processo com uma mais metódica assimilação da ironia de toda a tradição literária europeia, eliminando todo o peso morto setecentista e toda a cenografia romântica de que Garrett tanto sorri, mas sem deixar de aí tropeçar a cada passo. Outros aspectos curiosos deste vaivém no estilo de Garrett podem surpreender-se, por exemplo, na hipálage, ora de tradição clássica (pálidos dedos), ora já pós-tolentiniana e pré-queirosiana (profundo e cavo filósofo); e em efeitos de rima, aliteração ou repetição que já pouco têm que ver com a anáfora e o paralelismo da oratória vieiriana, porque esboçam as recorrências, os ritmos sabiamente leves de Eça (boquinhas gravezinhas e espremidinhas; dor tão resignada, mas tão desconsolada, nua e nula; e, tendo feito o seu feito, fugiram; o coração humano é como o estômago humano). Especialmente de notar o efeito conseguido pela adjectivação que combina a expressividade fonética com a sinestesia: estridor baco e breve dos gatilhos .

O Arco de Sant'Ana, onde se evoca o Porto feudal e se narra uma revolta popular germinada nos mesteirais da cidade contra o senhorio feudal do bispo, tem por ponto de partida, como o Alfageme, um relato de Fernão Lopes. Dentro das concepções românticas, Garrett procurou também aqui evocar costumes e tradições desaparecidas. Mas não é esta a única semelhança com o Alfageme : a pretexto da história, ambas as obras estão endereçadas à actualidade. No prefácio do Arco de Sant'Ana afirma-se de modo claro o propósito de combater a reacção cabralista, particularmente sob o aspecto clerical. Nesse prefácio, notável de lucidez, apontam-se as implicações políticas e sociais de certo historicismo romântico: "Com romances e com versos fez Chateaubriand, fez Walter Scott, fez Lamartine, fez Schiller, e fizeram os nossos também, esse movimento reaccionário, que hoje querem sofismar e granjear para si os prosistas e calculistas da oligarquia". O "feudalismo, que não inspirava senão horror ao homem do século XIX, começou a excitar-lhes a admiração; o monaquismo, que era aborrecido e desprezado, obteve dó e compaixão". O romance contrapõe à evocação "passadista" do passado uma intenção polémica democrática. O que, porém, Garrett faz, sobretudo, é uma crítica aos diversos grupos e instituições políticas do seu tempo. A oligarquia política então dominante está representada no bispo e seus acólitos, particularmente em Pêro Cão, cobrador dos impostos senhoriais; o Parlamento, acobardado, que atraiçoa os seus mandatários, vem personificado nos atarantados juízes da cidade; o povo, justamente revoltado, mas disperso e manobrável pelos oportunistas, como já aparecera no Alfageme, encarna nos mesteirais do Porto. Já notámos que o cabecilha da insurreição é afinal um nobre que se ignora como tal.

A obra vive também do estilo vivo e plástico do autor, do seu humour original, a pairar em algumas cenas e em constantes digressões. Como no teatro, as personagens agem segundo uma psicologia elementar, os sentimentos são leves e superficiais, sem dar lugar (a não ser no Bispo) a intensos conflitos; e o amor aparece sob a forma optimista de alegre preparação para o matrimónio, como no Alfageme aparecera sob a forma de plácida vida matrimonial. E em ambas as obras tudo acaba burguesmente bem.
Com esta rudimentaridade de dimensão psicológica contrasta a novela das Viagens : dir-se-ia que entre as duas obras se abre a mesma distância que separa o Frei Luís de Sousa do Alfageme ou de Um Auto de Gil Vicente .
A efabulação aparece por entre a ramagem das impressões de viagem e digressões de toda a ordem de que são feitas as Viagens na Minha Terra, segundo o modelo da Viagem Sentimental de Sterne (1787) e da Viagem à roda do meu quarto de Xavier de Maistre (1795). Pode reduzir-se à história sentimental de um rapaz que se apaixona de um modo sucessivo ou simultâneo, mas intenso, por várias mulheres, e se sente incapaz de estancar este constante fluir do seu desejo, de fixar e estabilizar a sua personalidade afectiva. O herói quer sinceramente continuar fiel pelo coração ao seu amor precedente, quer, sentindo-se à deriva num fluir sentimental incessante, deitar a mão a uma corda de salvação. Mesmo nos momentos de delírio febril causados por uma grave ferida em combate, esse querer sentimental se manifesta subconsciente ao apertar com força uma recordação oferecida pela mulher que, dizia ele, "ainda amava". O diálogo de Carlos e Georgina, quando ele recuperava a consciência, é notável como revelação deste conflito íntimo. Carlos pretende convencê-la da sua fidelidade, e quando Georgina, compreendendo a situação, lhe diz que já não o ama, ele reage como se se sentisse perdido, mas vê-se que esta reacção desesperada é um tributo póstumo, um inconsciente castigar-se a si próprio, como o culto contrito que Telmo Pais prestava à memória de D. João de Portugal. A mentira mistura-se à verdade de maneira inextricável.

Ninguém, antes de Garrett, na ficção portuguesa, entrara tão subtilmente na análise do que há de convencional, fictício ou autêntico na vida sentimental, na confusão de verdade e de mentira, de vida actual e de sobrevivência que é o todo afectivo de cada indivíduo; e ninguém pôs em termos tão agudos o problema do desgarrar da personalidade na mudança de tudo, ligando-o, ao mesmo tempo, ao cepticismo superveniente a uma causa generosa que degenera: Carlos descrê de um seu amor verdadeiro, ao mesmo tempo que descrê da revolução que substitui o domínio do frade pelo do barão capitalista do Constitucionalismo, preparando-se ele próprio para a comédia da vida social com o futuro triunfo político desse liberalismo mistificado.

A novela remata, com efeito, por uma carta em que o protagonista desfibra, em tom vário, a situação sentimental. Aí se confessa moralmente desqualificado: "Eu, sim, tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade doméstica... mas não o quis a minha estrela. Embriagou-se da poesia a minha imaginação e perdeu-se". Na guerra fugira a oportunidade desejada de morrer com uma bala; mas escolheria outro modo de morte: o cepticismo: "Creio que me vou fazer homem político, falar muito na Pátria com quem não me importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e - quem sabe - talvez darei por fim em agiota, que é a única vida de emoções para quem já não pode ter outra".
Esta corajosa apreensão da realidade psicológica comunica-se-nos em Viagens por meio de situações e diálogos; é flagrante a sua estrutura teatral, e nunca porventura o instrumento do diálogo garrettiano, onde se exterioriza o que se diz e o que se não diz, onde se captam as reservas mentais, onde as palavras deixam ver a sinceridade e fingimento combinados ou sucessivos, revelou como aqui os seus múltiplos recursos.


In História da Literatura Portuguesa
2002 Porto Editora, Lda.

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