quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Os "Sonetos"

É nos Sonetos que encontramos o melhor conjunto da obra poética amadurecida de Antero. Deve-se, como sabemos, a João de Deus a reabilitação dessa forma clássica, "a forma lírica por excelência" no juízo anteriano, molde disciplinador que o primeiro Romantismo desprezara e que se tornaria predilecta de Antero de Quental. Há nisto uma espécie de novo-classicismo, de uma nova discursividade relacionante, demasiado abstracta mas ritmicamente sugestiva, a que não faltam, como sinais de uma tradição rediviva, certos traços camonianos, por exemplo, a concepção dialéctica da realidade e até paráfrases de versos ("Que sempre o mal pior é ter nascido"; "Mas passar entre turbas solitário"), e bocagianos, como certas alegorias, frequentemente maiusculadas, e a obsessão da morte.
O poeta via na série completa dos Sonetos, muitos deles desentranhados de outras colecções já publicadas, um conjunto de marcos da sua própria autobiografia espiritual. Oliveira Martins, no prefácio para a edição dos Sonetos Completos, dividiu-os em cinco fases. A primeira fase, de 1860-62, que vai portanto até aos vinte anos do autor, representa o drama do romper com a sua fé infantil e de uma insatisfação que transborda por sobre os limites das crenças, do amor e da vida vivida. A segunda fase, 1862-66, constituída sobretudo pelos sonetos extraídos das Primaveras Românticas, regista a primeira das suas grandes crises sentimentais e o abatimento da frustração; sem o testemunho das outras poesias deste período, ficaríamos desconhecendo o largo sincretismo das suas tendências juvenis. A terceira fase (melhor se diria o terceiro ciclo, visto que intersecta o período anteriormente indicado) está compreendida entre 1866-74, correspondendo ao decénio de empenhamento combativo: é a fase solar, de hino à razão, onde se incluem produções extractadas das Odes, algumas das quais referimos. A quarta fase, 1874-80, documenta o reinado do pessimismo informado pela metafísica de K. R. E. von Hartmann. Por fim, a quinta e derradeira fase seria a da reconciliação mística.
Não devemos tomar inteiramente à letra a arrumação cronológica feita por Oliveira Martins, apesar de sancionada pelo autor, pois as investigações pacientes de Bruno Carreiro, corroborando análises de Joaquim de Carvalho, revelam que os sonetos À Virgem Santíssima e Na Mão de Deus estão deslocados: o primeiro é de 1872 e o segundo de 1882, o que muito importa para a compreensão da trajectória mental de Antero, visto que a sua ordem exacta confirma a interpretação, proposta por António Sérgio, de uma permanente coexistência de dois Anteros .

O gosto literário prevalecente nos últimos decénios tornou-se mais severo em relação ao soneto anteriano, anteriormente mais reverenciado do que efectivamente compreendido. E, na verdade, comparando Antero a Gomes Leal, que, de resto, o continua quanto à veia revolucionária, e mesmo ao Eça de Queirós de certas evocações, onde se pode ver autêntica poesia nalguns ritmos livres de prosa aparente, sente-se-lhe o vazio de imagens, flagrantes da experiência mais imediata, e faltam-lhe cambiantes humorais - qualidades tolhidas por uma atenção mais firme ao travejamento conceptual, e sobretudo por um fundo, algo inflexível, de exemplaridade moral, que também lhe não permitiu aceitar o realismo de O Crime do Padre Amaro (na primeira versão), nem assimilar senão uma caricatura de Baudelaire.
O alegorismo ainda bocagiano (e, para além disso, renascentista), que já mencionámos a propósito das personificações maiusculadas, alarga-se a toda a estrutura de um soneto como Tormento do Ideal, O Palácio da Ventura, Hino à Razão, Mors-Amor e muitos outros, acentuando-se frequentemente o artifício do processo com o diálogo e a apóstrofe. O cunho classicizante da adjectivação ressalta do que tem de insensorial, de alatinado ou quinhentista (mesto, gélido , rudo) e da melopeia dos seus emparelhamentos(largo e fundo , pálido e triste).
Mas se é verdade que Antero não soube transmutar-se todo em expressão literária, se é verdade que as suas obras poéticas mais não exprimem que um nível de consciência filosófica sobre uma tonalidade emotiva expressa em termos muito vagos e genéricos, ele não deixa de elevar-nos a um dos cumes da nossa poesia, se inscrevermos os poemas no largo contexto que sobretudo se evidencia pela sua extensa e ímpar epistolografia. Os Sonetos merecem a melhor atenção. Apesar da rima pobre, a partitura dos timbres, das articulações e dos ritmos frásicos compensa sobejamente uma visualidade ausente, ou, por melhor dizer, pardacenta e nebulosa, cingindo ora o entusiasmo libertador do Homem sobre a Terra

Ergue-te, então, na majestade estóica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heróica;
Faze um templo dos muros da cadeia,
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo da luz da tua Ideia!

ora a ansiedade incontível em quaisquer limites e cuja respiração se sente em versos como

É lei de Deus este aspirar imenso (A Santos Valente)
Amar! mas de um amor que tenha vida... (Amor Vivo)
Nuvem, sonho impalpável do desejo... (Ideal)
E deixa-me sonhar a vida inteira... (À Virgem Santíssima)


É preciso atentar na larga construção rítmica de alguns dos sonetos, para compreender o que neles há de perturbantemente comunicativo, apesar da falta de originalidade sob o ponto de vista vocabular, estilístico ou das imagens. Mesmo o que possa parecer já murcho nos Sonetos não impede, nos melhores, uma fluidez capaz de colar-se a certos estados de alma nevoentos, fugazes ou desenganados. Repara-se, quanto a isso, na expressividade dos artigos indefinidos em À Virgem Santíssima, no soluçante abandono de Despondency, que acaba rasgado em reticências, e até no partido rítmico admirável que o poeta extrai desse recurso tão clássico que é o hipérbato a alterar com a ordem frásica directa, em, por exemplo, A Santos Valente .
A influência dos Sonetos é muito sensível em muitos poetas do primeiro quartel do séc. XX, que preferem essa forma métrica prestigiada por Antero.


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

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