quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Viagens na Minha Terra

Estilo coloquial, engraçado, de conversa ao abandono do incidente, ou do salto lírico. Novidade para o tempo. Paradoxo subtil de urna arte que se aproxima da vida, sem com ela se confundir. Conversa com um interlocutor ideal, cheia de vivacidade, de elegância, de sabor de vida e convívio, e aparentemente sem nenhuma espécie de plano preconcebido. Alusões e comentários acerca de qualquer facto ou monumento podem revelar a riqueza íntima de uma alma, que assim se encontra, numa obra em que as energias do homem extrovertido se transfiguram em qualidades artísticas. Notem-se as passagens em que a estética de luz e fogo, de Garrett, se harmoniza com o assunto, particularmente em tudo o que se refere à figura de Joaninha, que é vista sobre o fundo do «fogo / Ardente das batalhas».

– Encarnação do ideal amoroso de Garrett (num processo parecido ao de Fradique Mendes, de Eça). Aqui se concretizou, depois de se ter esboçado em várias das suas figuras femininas: D. Branca, D. Beatriz, Alda (do Alfageme de Santarém), Gertrudes (de O Arco de Sant'Ana), e outras mais secundárias. Corresponde ao ideal platónico da poesia «Ela», das Flores sem Fruto, e é uma «ideal e espiritualíssima figura», a mulher-anjo dos românticos, mas, muito mais particularmente, de Garrett. Ideal de delicadeza, fragilidade e ternura, uma espécie de iluminura gótica.

– Carlos é o drama do próprio Garrett, vítima da ambiguidade amorosa desse ideal de pseudomisticismo. Como essa espiritualização angélica é promovida pelo erotismo, não tem depois maneira de se decidir entre tantas figuras «espiritualíssimas» e acaba por as atraiçoar a todas. Daí o tema da impossibilidade do amor, tão dramaticamente desenvolvido nos últimos capítulos do livro, particularmente na carta de Carlos a Joaninha. Esta carta é que é o centro do livro, e tudo o mais foi conversa para fugir ao assunto. «É forçoso escolher», já dizia a fada Alina a Aben Afan . Mas para o platonismo dúbio de Carlos não havia motivos que fixassem a escolha.


João Mendes, Literatura Portuguesa III

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