quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A batalha de Alcácer Quibir

Frei Luís de Sousa

Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.

I – ARGUMENTO (macroanálise):

No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.

1º acto:

a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.

b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.

c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.

d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.

– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.

Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.

2º acto.

a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.

b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.

c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.

3º acto:

a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.

6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.

c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.


II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):

1. Drama...

a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.

b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.

c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.

2....romântico...

a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.

b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.

Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.

c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.

3....de Garrett

a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.

b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.

c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.

E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.


João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.

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