quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Obra poética de Antero. A juvenília

Para bom estudo temático e estilístico da poesia anteriana, convirá, pondo de parte a complicada história da sua arrumação em volumes (que pode ver-se adiante resumida em bibliografia), fazer-se a seguinte tripartição: 1) aquilo que designaremos como a sua juvenília (fundamentalmente: Primaveras Românticas e Raios de Extinta Luz); 2) as Odes Modernas (quer na edição de 1865, quer na já refundida de 1875); 3) os Sonetos, considerados à parte.
As poesias escritas até 1864 (com exclusão das Odes) e que figuram, entre outras posteriores mas afins, quer na primeira edição dos Sonetos, 1861, quer nas Primaveras Românticas, 1875, quer na terceira edição, a mais ampliada, de Raios de Extinta Luz, 1948, revelam, ao longo do tempo, um rápido processo evolutivo, de que já vimos os lineamentos gerais, e, a um corte transversal ou sincrónico situado à volta de 1864, uma grande multiplicidade de tendências e gostos, aliás concordante com a diversidade dos depoimentos sobre o Antero coimbrão, prestados no In Memoriam pelos ex-companheiros de Coimbra, mesmo que nesses se desconte uma dose maior ou menor de romanceação pessoal.
Uma das características distintivas do conjunto desta juvenília é a relativa importância dos temas amorosos, que nas fases adultas da sua obra se tornam secundários ou, antes, se perdem no meio de outros, reduzindo-se a anseios ou desilusões em torno das alegorias maiusculadas do Amor e da Mulher. O amor da poesia anteriana jovem evolui de um anelo espiritualizado à Lamartine ou João de Deus (mestre que neste ponto alcança, por vezes, em simplicidade e pureza) para uma harmonia afectiva mais rica, onde certos discretos apelos carnais, a meditação filosófica da própria ansiedade amorosa, e (em Peppa, sobretudo) um misto de pompa salomónica e de ironia lírica, até de sarcasmo, à Heine, emergem à tona de resíduos garrettianos, herculanianos e ultra-românticos.
Este enriquecimento de planos ou modulações afectivas não chega a arrancar a erótica anteriana ao Romantismo sentimental, embora lhe confira incontestável originalidade. Intensa e às vezes dramaticamente apaixonável, ao que nos revelam os amigos, Antero não sente ainda, como lírico, uma plena humanidade feminina: angeliza, infantiliza ou maternaliza sempre a mulher. Vê-a frequentemente, mesmo mais tarde, e logo nos primeiros poemas publicados, como a Beatrice dantesca, Eterno Feminino espiritualizador das inapaziguáveis, fáusticas ansiedades do homem que é; e o soneto À Virgem Santíssima, que neste sentido lembra muito o papel da Virgem no desfecho do Fausto de Goethe, dá forma acabada ao neoplatonismo erótico de Camões, postulando uma como que essência feminil a servir de medianeira entre o humano e o divino. Em mais que uma poesia chegam a fundir-se a imagem maternal, acalentadora, e a imagem pueril, "pequenina", da feminilidade em botão, numa síntese original e estranha, não porque se afaste muito da concepção idealizada do amor entre os nossos românticos, mas porque lhe falta a hipocrisia de uma sensualidade disfarçada, e o que nela se sente é ou certa iconoclastia erótico-religiosa ou o toque sincero de um objecto amoroso inatingível pelo desejo corrente:

Sê, flor, meu universo,
Criança, a minha mãe.

Comparada à poesia da maturidade, a da juventude de Antero deixa-nos a impressão de uma encruzilhada de muitos caminhos, todos aparentemente praticáveis pelos seus dons, e entre os quais se veio a fazer uma opção, mais do que síntese. Com efeito, Raios de Extinta Luz e Primaveras Românticas contêm, além da erótica já referida, composições de um niilismo blasfemo; uma cosmogonia de inspiração bíblica (Fiat Lux); uma imitação em que se detecta o baudelairismo do "aroma irritante e acre do vício", precursor da contrafacção, em 1869, de um poeta "satânico", Carlos Fradique Mendes, na qual participou com Eça e Batalha Reis; quadras para baladas coimbrãs; poesias sobre o tema da transmigração, ligada à matéria, da alma ou sensibilidade dos mortos, que dominará as Prosas Bárbaras de Eça e muito da obra de Gomes Leal; umas Saudades Pagãs, longo poema sobre o tema panteísta, originariamente romântico alemão, do exílio dos deuses, depois inexistente na sua obra e sobretudo na de Eça; a fantasia algo pré-simbolista de Limoeiro Verde ; e o soneto de impressionante desalento Despondency, datado, aliás, de um dos anos de maior combatividade (1864).


História da Literatura Portuguesa (DVD),
2002 Porto Editora, Lda.

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