quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

As "Odes Modernas

Se excluirmos uma ou outra composição inserta nas colecções atrás versadas e alguns sonetos, podemos considerar as Odes Modernas como de um género ou de uma inspiração completamente à parte. Já, a propósito da Questão Coimbrã e da biografia espiritual de Antero, apontámos o que há de inovador na sua informação doutrinária. De resto, em Nota à primeira edição, o autor indica o seu alvo, numa linguagem que ecoa, sem dúvida, Proudhon. A seu ver, "a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade", e, portanto, dadas as condições vigentes, "a Poesia moderna é a voz da Revolução". E uma vez que o Progresso atingia todas as manifestações humanas, Antero afirma, intemerato: "Esta voz, se é a mais alta, deve ser também a mais poética". Lido à distância de três ou quatro gerações, e sobretudo em ambiente que não esteja em sintonia como os seus ideais, o livro correspondente a este ambicioso proudhonismo choca pela temeridade de ignorar que os ritmos do progresso nas múltiplas linhas da história humana raro sincronizam; de resto, noutros textos, tanto de 1865 como dos anos 80, Antero liga o progresso da ciência e da Justiça a uma pretensa e iminente superação da música e da poesia. A sua personalidade constitui já um exemplo vivo das desconexões verificáveis entre o pensar e o sentir, ou melhor, entre o pensar poético, o pensar prático e o pensar doutrinário.
A impressão de envelhecimento que as Odes hoje nos causam resulta, em parte, de as apreciarmos sob um critério de leitura muda e individual, que não corresponde à sua inspiração e destino. Deveríamos imaginá-las declamadas a um público receptivo e largo, capaz de vibração imediata ao ouvir exaltar Garibaldi e estigmatizar o farisaísmo burguês, a chacina dos polacos pelas forças do Tsar, dos irlandeses pelos latifundiários britânicos, dos "Communards" pelas tropas de Versalhes que haviam traído a França, etc.. Fora de um tal ambiente dramático de declamação, o que melhor se nos comunica é o íntimo drama representado pelo poeta e que encontra na série de sonetos A Ideia e ainda no soneto isolado Mais Luz!alguns dos tons mais justos. O conflito desenrola-se entre dois apelos diferentes daquela mesma devoção inteira, superadora da individualidade imediata e aburguesada, que Antero sentiu sempre como apelos de santidade: a santidade tradicional, voltada para a transcendência ao humano, e uma santidade nova, revolucionária, constantemente unida no poeta aos símbolos ou emblemas da Razão, da Luz, do Sol. É sobretudo no soneto IV de A Ideia que Antero faz crepitar mais alto a chama heróica de uma Ideia imanente aos homens, vibrando ainda de ter rompido com o transcendentalismo donde partira, e antes de percorrer, na mesma série, a estirada alegoria em que faz noivar o espírito humano com a Ideia, num "lá" não se sabe onde, um "lá", que depois se converte em "cá", o "céu incorruptível da consciência".

Sob inspiração das ciências genéticas, das sínteses históricas de Michelet, das utopias de Proudhon e do modelo poético da Légende des Siècles de Hugo, cuja presença é bem palpável, as Odes traçam os tópicos de uma epopeia do cosmos e da humanidade. Outros moços coimbrãos do tempo tentaram empreendimento semelhante, entre eles Teófilo Braga com a Visão dos Tempos, que se não cansou de ampliar pela vida fora, e o próprio Eça de Queirós, de cujas projectadas Memórias de um Átomo ainda ficou um largo rasto nas Prosas Bárbaras . A tentativa ressente-se de um ideário que não pôde ser vivido até àquelas minúcias quotidianas, até àqueles recessos despercebidos que, num simples traço inintencional, na mais simples evocação de certo uso vocabular, criam a própria carne de um poema. Além disso, mesmo na segunda edição refundida, certas repetições negligentes de metáforas e giros frásicos, certa monotonia mecânica das mesmas séries semânticas de palavras, certa frouxidão mental deixam-nos um gosto de improviso e de imaturidade.
Por outro lado, fica-se judicativamente perplexo perante uma característica, aliás não puramente anteriana, pois vem de Michelet, de Hugo, de Proudhon, do utopismo romântico: o uso metafórico de símbolos religiosos consagrados, que tanto sugere a polémica, a tensão de um rasgar de horizontes, como o meio-termo, o pouco imaginativo ou tímido recurso a odres velhos para o vinho novo. Disso resulta um sabor a mistura discorde, um senso de hibridação infecunda.
Esta tensão e este meio-termo assumem um significado mais denso, se relacionarmos as Odes, e a sua informação cultural estrangeira, com a herança de Herculano. Com efeito, não se podem ler as Odes sem se sentir o jeito de visionar a história como uma procissão de grandes catástrofes civilizacionais, um desabar sucessivo de "tronos, religiões, impérios, usos"; simplesmente, o Eterno deixou de ser o Deus bíblico, para se converter em Ideia, ante a qual, sem excepção, todos os "deuses cambaleiam". As Odes soam, em grande parte, como despedida ao romantismo herculaniano do Passado, "larva macilenta", à "poesia de ruínas", "às saudades, que vêm, como soluços/Do fundo da História!". Mas a grandiloquência mantém-se e com ela um moralismo, afinal já em Herculano contraditoriamente anistórico, e agora transferido à Justiça revolucionária de Proudhon; a palavra-chave desta transferência é o epíteto de santo, atribuído aos símbolos do novo ideário; e a santificação opera-se estilisticamente por alegorias formulares ou oposições do género missa nova da Liberdade, Evangelho Novo da Igualdade, órgão colossal da Revolução, púlpito imanente do peito humano, a cúpula da igreja oposta à do céu infinito, o círio do altar oposto ao sol; isto sem falar nos títulos latinos e nas insinuações de religiosidade naturalista e anticlerical que ressumam de determinações, aliás tão vagas e até contraditórias, como as de "estola", "estrada", "estrada" e até "orla" (sic) do Infinito espacial.


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

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