quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Alexandre Herculano

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em Lisboa, em 1810. De família modesta, não pode fazer curso universitário. Depois dos estudos secundários no Colégio dos Oratorianos, assiste ao curso de Inglês e Alemão na Aula do Comércio e, em 1830, segue o curso de Diplomática na Torre do Tombo. Conhece então a Marquesa de Alorna. Em 1831, a situação política reinante obriga-o a exilar-se na França (Rennes), onde gasta o mais do tempo a estudar. No ano seguinte, está nos Açores incorporado ao exército liberal, com o qual desembarca em Mindelo. Em 1833, trabalha na Biblioteca Municipal do Porto, como segundo-bibliotecário. Em 1836, demite-se e inicia sua carreira de prestígio intelectual com a publicação d’ A Voz do Profeta. No ano seguinte, entra a dirigir o Panorama, até 1844. Ao mesmo tempo que passa a Director da Biblioteca da Ajuda, naquela revista inicia a publicação de suas obras de ficção: as Lendas e Narrativas, O Bobo, o Monge de Cister. É a fase mais intensa de sua actividade literária, e política, na defesa das ideias liberais. Interpretando com desassombro e espírito crítico alguns fatos da história de Portugal, como a batalha de Ourique, cujo aspecto lendário destrói com sólida argumentação, acaba provo-cando enérgica reacção do clero, logo por ele revidada num opúsculo que veio a dar nome à polémica Eu e o Clero (1850). A década de 50 é-lhe desfavorável: além das apoquentações com o clero ultramontano, colhe uma série de desgostos na arena política, até que, em 1859, adquire uma quinta em Val-de-Lobos e lá se refugia, embora atento ao que acontece em Lisboa. Em 1866, casa-se com uma senhora que amara na juventude, e afasta-se ainda mais da vida pública. Por ocasião das Conferências do Casino Lisbonense (1871), pronuncia-se a respeito do seu fechamento, mas já como último lampejo de participação pública: em 1877, falece em sua quinta, aureolado de glória e respeito nacionais.

Alexandre Herculano é diametralmente oposto a Garrett em todos os aspectos: personificação da sobriedade, do equilíbrio, do rigor crítico; espírito germânico, dir-se-ia, enquanto 0 outro é latino, sobretudo Francês. A obra de Herculano reflecte-lhe o temperamento e o carácter: manteve-se imperturbável na posição de homem que apenas se julga convicto das ideias que defende depois de longa e cuidadosa meditação. Daí sua intransigência e sua indignação diante da pouca receptividade de suas ideias: seu "exílio" voluntário em Val-de-Lobos é o dum orgulhoso, certo da magnitude do seu pensamento e da pobreza do meio em que deveria divulgá-lo e concretizá-lo.

Escreveu poesia (A Vox do Profeta, 1836, mais adiante incluído na Harpa do Crente, 1838), romances (O Bobo, publicado no Panorama em 1843, e em volume, em 1878: O Monge de Cister, parcialmente publicado no Panorama, em 1841, e em volume, em 1848; Eurico, o Presbítero, parcialmente publicado no Panorama e na Revista Universal Lisbonense, em 1843, e em volume no ano seguinte: os dois últimos formam O Monasticon), contos (Lendas e Narrativas, publicadas no Panorama entre 1839 e 1844, e em volume em 1851), historiografia (História de Portugal, 4 vols., 1846, 1847, 1850, 1853; História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 3 vols., 1854, 1855, 1859; dirigiu a publicação dos Portu-galiae Monumenta Historica, iniciada em 1856 e terminada em 1873), ensaismo vário e polémica (Opúsculos, 10 vols., 1873-1908; Estudos sobre o Casamento Civil, 1866; Cenas de um Ano de Minha Vida, 1934), etc. Impõe-se observar que o forte de Herculano era a historiografia, por condizer mais de perto com o mais íntimo de seu temperamento e formação, e a tal ponto que tudo quanto escreveu reflecte essa afinidade e predisposição.

Em 1850, Herculano publica suas Poesias, divididas em três partes, Harpa do Crente, Poesias Várias e Versões, na primeira das quais integra A Vox do Profeta. Produção da mocidade ("Fui poeta só até os vinte e cinco anos", diz ele em carta a Soares de Passos, de 5 de Agosto em 1856), nela vazou os transes de sensibilidade próprios da idade e os temas em voga no tempo: a poesia nocturna, pressaga, tétrica, soturna, a poesia da dor, da saudade, da liberdade, etc., girando em torno de dois núcleos, a religião e a política, não raro fundidos. Embora romântica pelos temas, a poesia de Herculano caracteriza-se por uma contensão que jamais cede a qualquer impulso 'para o derramado. Antes, solene, hierática, teatral, majestosa, é mais poesia pensada que sentida, denotadora duma inautêntica inclinação para o género: tendo-a cultivado apenas nos anos juvenis. Naturalmente correspondia mais ao contágio das modas em vigor e à procura de caminhos próprios da idade, do que a uma profunda e inadiável vocação. Em sua essência, Herculano era demasiado historiador para se entregar a uma visão poética do mundo e dos homens: faltava-lhe a necessária imaginação transfiguradora da realidade sensível, e sobejava-lhe o espírito crítico e a erudição. De sua poesia, somente merece algum destaque o poema "A Cruz Mutilada", onde perpassa, apesar de tudo, muito pensamento sem emoção, além de subsistir a tendência para o declamatório altissonante.

Embora noutro nível, Herculano manifesta na prosa de ficção a mesma tendência para a contensão e a intelectualização revelada na poesia. Ao mesmo tempo, padece do mal que compromete pela base a narrativa histórica, seja ela romance ou conto: o ficcionista vê-se obrigado a debruçar-se sobre documentos historicamente fidedignos sob pena de não realizar o que pretende. E é exactamente essa condição sine qua non que limita o alcance do género, impedindo que a imaginação se desdobre livremente: devendo ater-se à verdade histórica documentada, quando muito o ficcionista deduz dela um conteúdo novelesco e preenche com a fantasia os claros do texto, mas sempre atento à verdade dos fatos que nele se registaram. Em resultado, o historiador acaba afogando o ficcionista, graças a excessivos enxertos eruditivos em forma de descrição de usos e costumes e de narração minuciosa de fatos e acontecimentos.

As Lendas e Narrativas constituem "as primeiras tentativas do romance histórico que se fize-ram na Língua Portuguesa", com o fito de "popularizar o estudo daquela parte da vida públi-ca e privada dos séculos semi-bárbaros que não cabe no quadro da história social e política", como diz Herculano na "Advertência da primeira edição" da obra.

Com base na sua erudição histórica e aproveitando material sobrante à elaboração da História de Portugal, Herculano trata de temas predominantemente medievais ("O Alcaide de Santarém", 950-961; "Arras por Foro d'Hespanha", 1371-1372; "O Castelo de Faria", 1373; "A Abóbada", 1401; A Dama Pé-de-Cabra", século XI; "O Bispo Negro", 1130; "A Morte do Lidador", 1170), e dois oitocentistas, um dos quais, além de não-português, é uma espécie de reportagem duma viagem de navio no canal da Mancha ("O Pároco da Aldeia", 1825, e "De Jersey a Granville", 1831). Dos primeiros - caracterizados por atmosferas de tragédia, aná-temas, soturnidades, tensões passionais -, salientam-se duas peças de primeira categoria: "A Abóbada", que gira em torno do patriótico feito de mestre Afonso Domingues ao erguer, embora cego, a pedra que serviu de arremate ao mosteiro da Batalha; "A Dama Pé-de-Cabra", que, baseando-se num "romance de um jogral", reconstitui flagrantemente o clima de magia e bruxedos da alta Idade Média supersticiosa e crédula.

Dos outros dois contos, destaca-se de modo especial "O Pároco da Aldeia": nele, Herculano nega a filosofia e a ciência:"Como a filosofia é triste e árida!

A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte; mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o cepticismo." Elogia o culto da religião católica: "Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça!", e faz a apologia do sacerdote e da pureza ideal, dos anos infantis e juvenis, quando longe andava "o demónio imputável a que chamam ciência". Além disso, nele aparece pela primeira vez o tema campesino, que servirá de modelo a Júlio Dinis na elaboração de seus romances: este aspecto é mais significativo que aquelas notações semi-filosóficas, fruto dos conflitos ideológicos de Herculano na mocidade e logo resolvidos numa atitude menos poética ou devaneante.

Sob a rubrica de O Monasticon, Herculano reúne O Monge de Cister e Eurico, o Presbítero. O primeiro tem como subtítulo ou a Época de D. João I, que marca perfeitamente o tempo em que a acção transcorre, e a fonte em que fatalmente o romancista se apoiaria, Fernão Lopes. De trama intricada e densa, o romance transcorre num clima agitado por questões morais e religiosas em luta com a paixão amorosa e um terrível ódio vingativo que não cessa enquanto há vida. E um perfeito clima de tragédia, inclusive pela inexorabilidade dos destinos, talhados sem intervenção divina, mas acima do livre-arbítrio ou da vontade. Vasco da Silva jura matar a Lopo Mendes que casara com sua bem-amada, Leonor, e vingar seu pai, ultrajado por um cavaleiro que abusara de sua irmã, Beatriz. Assassinado Lopo Mendes, Vasco imerge num profundo rémordimento, de que pretende sair tomando hábito. Nesse entrementes, o sedutor de Beatriz, Fernando Afonso, abandona-a. D. João de Ornelas, abade de Alcobaça e inimigo de Fernando Afonso, vai avivar o ódio de Vasco, descobrindo que no paço real o pérfido mantinha encontros amorosos com Leonor, que aquele não deixara de amar. Beatriz morre, e Vasco revela ao rei D. João I o passado nefando de Fernando Afonso, que acaba sendo supliciado na fogueira. E, por fim, Vasco morre.

Percebe-se, pelo simples enunciado da acção, que o romance padece de hipertrofia na fabulação, resultante possivelmente do intuito de aproveitar o máximo possível do material histórico descoberto. No final, o emaranhamento dos fatos acaba embaçando o retrato moral que o romancista pretendia erguer. Falta-lhe o despojamento que de certo modo se verifica no Eurico, o Presbítero.

Nesta obra, em que analisa o problema do celibato clerical "à luz do sentimento", Herculano consegue atingir o ponto mais alto de suas possibilidades como ficcionista, precisamente porque deixou mais livres a imaginação e o impulso lírico. A "Crónica-poema", como ele a classifica, passa-se durante o trânsito da monarquia visigótica "para o período da cavalaria", em torno dum núcleo dramático simplificado às raias do ocasional: Eurico, antigo gardingo (= fidalgo) toma hábito depois que o pai de Hermengarda lhe nega sua mão. Nisto, sobrevém a avassalante invasão árabe: enquanto Pelégio - prepara defesa nas Astúrias, um misterioso Cavaleiro Negro ganha fama na defesa das cores visigóticas: é o próprio Eurico, que salva Hermengarda das mãos sarracenas e leva-a para a Gruta da Covadonga onde renasce o velho amor, que agora esbarra com um inesperado obstáculo: o juramento sacerdotal. Resolvem separar-se: Eurico lança-se suicidamente contra os árabes e morre, enquanto Hermengarda enlouquece.

No Eurico, o Presbítero evidencia-se mais nítida ainda a estrutura a modo de tragédia: pri-eiro ato: antes de Eurico professar; segundo acto: as lutas contra os sarracenos; terceiro ato: reencontro dos amantes e desenlace. Todavia, é preciso ponderar que o segundo acto pesa demasiado no conjunto e contém matéria que deveria ser apenas tangencial, ou cenográfica, do entrecho dramático propriamente dito. Ao contrário, o problema amoroso é que se torna incidental e marginal ao panorama histórico aberto pela retrospectiva de Herculano: serve mais de pretexto para a reconstituição histórica que - de eixo da acção novelesca. O escritor parece mais interessado no panorama histórico que em acompanhar o desenvolvimento do drama afectivo, de resto pouco rico para dar mais do que um conto. De tal modo que, entrado Eurico na vida eclesiástica e mais tarde no caminho das armas, fica obrigatoriamente afastado o problema amoroso derivado de Hermengarda, e é só depois dum longo lapso de tempo que a heroína volta à cena, e, assim mesmo, para o epílogo: essa demorada espera só se justifica pelo facto de Herculano, embora liberte a fantasia e o lirismo de que ainda era capaz, continuar patriamente um historiador. Mais ainda colabora para enfraque-cer o impacto trágico da novela o seguinte pormenor: Eurico abraçou a vida religiosa porque quis, abdicando de vez do seu anterior desígnio, mas não fugiu, paradoxalmente, de ser cavaleiro e matar; e quando os óbices eram apenas os duma consciência impregnada de princípios exteriores, ele fraquejou e não realizou o que foi a razão de sua vida até àquela data. Para o suicídio em que se lança acto contínuo à entrevista com Hermengarda, pouca diferença fazia consumar um velho desejo, indiscutivelmente mais explicável, à 'rigorosa consciência ética de Eurico, do que matar cavaleiros inimigos e entregar-se à morte, o que era profundamente anticristão.

Por outro lado, essas incongruências talvez ajudem a explicar o lado poético e "humano" do romance, tornando-o mais verídico que O Monge de Cister, onde tudo anda numa precisão cronométrica até o desfecho, previamente anunciado desde o início da fabulação. Desse modo, o valor de Eurico, o Presbítero reside na feliz e dinâmica reconstituição duma época de aventuras cavaleirescas, com o seu odor de far-west, que serviria de cenário para uma triste história de amor contrariado; reside, ainda, no recorte psicológico das personagens centrais, longe de certa estereotipia comum aos heróis românticos, embora em Hermengarda repercuta alguma coisa da suave e terna Ofélia shakespeareana: tudo isso, mais o tom elegíaco e plangente, vazado num estilo de talhe solene, pausado, clássico, despojado.

Herculano foi, acima de tudo, historiador: a historiografia deu-lhe grandeza e prestígio, mas deu-lhe igualmente dissabores. Retomando o fio da meada que se interrompera em Fernão Lo pes - com quem tanto se parece -, e recebendo os benéficos influxos das teorias históricas de Guizot e Thierry, realizou na historiografia o melhor de suas virtualidades intelectuais e humanas, e tornou-se o introdutor dos modernos métodos historiográficos em Portugal e o Maior historiador de seu tempo.

Acreditando na intervenção subjectiva do historiador nos fatos que narra ou analisa - o que, aliás, acompanhava ainda os ditames da escola Francesa de historiografia -, Herculano me teu ombros a uma obra de ampla envergadura que servisse de espelho onde se mirassem os homens contemporâneos, especialmente aqueles guindados a postos de mando, a começar do rei. Para tanto, escreveria uma História de Portugal desde os albores da nacionalidade até o período da Restauração iniciada em 1640: era como se desentranhasse as bases e os "exemplos" da história do povo português. Todavia, Herculano só publicou quatro volumes da obra (1846, 1847, 1850, 1853), interrompendo-a no reinado de D. Afonso III, que ocupou o trono entre 1248 e 1279. Desgostos vários determinaram-lhe a interrupção da tarefa: a incompreensão acerca do que ele pretendia e a polémica da Questão "Eu e o Clero" foram as causas principais. Embora inacabada, a História de Portugal ficou como um verdadeiro monumento no género, pela erudição acumulada e examinada, pelo senso narrativo e interpretativo posto na reconstituição dos fatos, pela acuidade e altura das intervenções pessoais e, ao fim, pelas qualidades especiais de prosador castiço, viril e incisivo. Estas últimas salvam-no de cair na aridez e no incolorido a que o podia arrastar o gosto acendrado pelo documento e pela fidedignidade de seu conteúdo. Por isso, a História de Portugal pode inte-ressar ainda hoje, inclusive por seus aspectos propriamente literários.

Nos Portugaliae Monumenta Historica (1856-1873), Herculano reuniu crónicas, memórias, relações, anais, livros de linhagens, documentos notariais, leis, etc., de uma longa época histórica entre os séculos VIII e XV. A obra fragmenta-se em quatro secções: Scriptores, Leges et Consuetudines, Diplomata et Chartae, Inquisitiones, das quais a primeira interessa mais de perto à Literatura; nela se publicaram os Livros de Linhagens, as Crónicas Breves de Santa Cruz, a Crónica da Conquista do Algarve, a Vida de D. Telo e a Crónica da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa. Posto incompleta, a obra continua ainda hoje a servir a quantos se interessem pela actividade literária Portuguesa durante a Idade Média.

A História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859), escreveu-a Herculano estimulado pela Questão "Eu e o Clero": de intuito visivelmente polémico, irritado mesmo, mas ainda com os objectivos morais que lhe presidem à obra e à existência, faz ele o exame d"os vinte anos de luta entre D. João III e os seus súbditos de raça hebreia, ele para estabelecer definitivamente a Inquisição, eles para lhe obstarem", a fim de que, comparando a hipocrisia e o fanatismo do passado com a "reacção teocrática e ultra-monárquica" oitocentista. o leitor "decida entre a reacção e a liberdade".

O ensaismo doutrinário e polémico de Herculano tem muito interesse: reunido nos dez volumes dos Opúsculos (18721908), contém valioso material de reflexão ideológica, inestimável para o conhecimento do pensamento político, religioso, historiográfico, literário, etc., de seu autor. Alguns desses ensaios, como Eu e o Clero, A Supressão das Conferências do Casino, Cartas sobre a História de Portugal, à imitação das Cartas que Thierry escrevera acerca da França, encerram particular importância, quer na carreira intelectual de Herculano, quer na história da cultura Portuguesa do seu tempo. Herculano exerceu grande influência pelo exemplo de sua vida e de sua obra, ambas aureoladas por um halo de probidade e um alto respeito pela missão intelectual, pouco vulgares em qualquer literatura.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo


Publicada por Helena Maria em 05:22
Etiquetas: Alexandre Herculano
12 de Out de 2009
Herculano como doutrinário e polemista


A actividade de Herculano como historiador é, já o vimos, um aspecto da sua participação no debate dos problemas primaciais do seu tempo. Tanto a História de Portugal como a da Origem e Estabelecimento da Inquisição são peças de uma ardente polémica que acompanhou a reforma mental correspondente à implantanção do Liberalismo no nosso país. Ao lado destas duas obras de proporções monumentais, ocupam um lugar muito importante os artigos de polémica circunstancial, muitos deles reunidos nos Opúsculos . Uma parte deste material nasceu de uma intensa actividade jornalística: Herculano dirigiu ou foi colaborador de vários periódicos, como O Panorama, a Revista Universal Lisbonense, O País e O Português (estes criados por sua inspiração para combater o governo regenerador), A Pátria, etc. Nem todos os seus artigos jornalísticos eram assinados, e muitos por isso estão ainda por identificar.
Devem distinguir-se duas épocas na actividade de Herculano como jornalista e polemista: na primeira, anterior à polémica com o clero a propósito da batalha de Ourique (1850), predominam os assuntos políticos, pedagógicos e literários relacionados com a adaptação ao nosso país das novas instituições; na segunda, que vai até à morte, predominam os temas relacionados com a crise social europeia subsequente à revolução de 1848, com as novas condições sociais portuguesas que se desenvolvem a partir da Regeneração (1851) e com a adaptação da hierarquia religiosa à nova estabilidade da alta burguesia.
Antes de 1850, Herculano defendeu contra o radicalismo "setembrista" uma posição antimultitudinária, expressa com solenidade quase bíblica na Voz do Profeta ; combateu manifestações de descrença religiosa, o utilitarismo benthamista da ideologia burguesa britânica, defendeu humanitariamente os egressos dos conventos extintos e os monumentos nacionalizados, não obstante apoiar incondicionalmente a legislação que aboliu os direitos senhoriais e as ordens religiosas, os dois pilares do Antigo Regime.
Entre os problemas do momento que mais o interessaram nesta época, conta-se o do ensino popular e geral que, a seu ver, devia substituir o ensino privilegiado característico da monarquia absoluta e a que desejava dar um cunho acentuadamente agrícola e técnico. Na criação de uma cultura popular com orientação prática via Herculano a condição indispensável para poder organizar-se o verdadeiro regime liberal.
A esta mesma época pertence ainda a campanha pela criação de uma nova literatura. Herculano defendeu as teorias platonizantes de origem alemã divulgadas por Madame de Staël, segundo as quais a arte era a expressão de arquétipos ideais e não imitação da natureza como sustentavam quer os clássicos, quer os empiristas das Luzes; mas, em contraste com o estilo aristocrático e o individualista do Romantismo alemão, preconizou uma arte para o grande público, cujo principal género deveria ser o drama romântico, vendo em Bocage o precursor da nova literatura feita para a praça pública e não para os salões. Por outro lado, ainda, assimilou os ensinamentos dos irmãos Schlegel sobre a importância das literaturas medievais e das tradições populares como herança a recolher pela nova escola literária. Algumas das suas ideias ficaram expressas em relatórios sobre peças apresentadas ao Conservatório, integrando-se assim na reforma do teatro empreendida por Garrett.
A partir de 1850, verifica-se uma mudança nos temas mais insistentemente tratados por Herculano, e até mesmo uma mudança geral de atitude perante os problemas nacionais e europeus. As suas teses políticas, sociais e religiosas tornam-se mais precisas e mais combativas; o contexto ideológico em que se inserem alterou-se profundamente e deu um sentido novo a ideias já antigas.

O meio século marca, tanto em Portugal como noutros países da Europa ocidental, o fim provisório das insurreições e movimentos populares e nacionais, a restauração do autoritarismo em França, o avanço do capitalismo industrial e consequente proletarização, o reajustamento da Igreja Católica e a difusão da ideologia socialista. É nesse contexto que em Portugal se inscreve a Regeneração.
Herculano foi sensível a alguns problemas característicos desta viragem. Para o problema social criado pela industrialização e a correspondente proletarização propôs o fomento agrícola (sobreposto, no fundo, ao industrial) e a divisão cautelosa e lenta da propriedade rural. O seu ideal de sociedade, exposto principalmente no projecto de lei sobre os vínculos, no projecto de bancos municipais e na polémica sobre a emigração (1874), era o de uma federação de pequenos e médios proprietários agrícolas, com um mínimo de proletariado rural ou fabril por eles tutelado. Como consolidação da média propriedade chegou mesmo a preconizar a adaptação da instituição feudal da enfiteuse, de modo a proporcionar a efectiva detenção da terra a camponeses desprovidos de capital. Para obstar ao desenvolvimento da banca capitalista, preconizou a instituição de pequenas cooperativas bancárias municipais.
Contra a centralização política e a viciação do regime parlamentar por um sistema de partidos alternando-se no poder, que no fundo só representavam facções diversas da oligarquia político-financeira, defendeu Herculano uma larga descentralização através de um sistema de municípios dotados de grande autonomia e que, federando-se, interviessem efectivamente na orientação política nacional. Este problema foi principalmente debatido em uma série de artigos publicados n' O Português (1853).

Quanto ao ultramontanismo, Herculano tomou uma posição muito enérgica, quer na polémica sobre o milagre de Ourique, quer nas que se travaram em torno da Concordata de 1857, do casamento civil, da introdução das Irmãs de Caridade, quer ainda em cartas escritas ao padre Barros Gomes. Herculano declarava-se crente e católico, como na época em que escreveu O Pároco da Aldeia, mas defendia um catolicismo que considerava tradicional e o único legítimo, em profundo acordo com o Liberalismo. Esta doutrina religiosa, que se aproximava do galicanismo, tinha, entre outras características: a não interferência eclesiástica na vida civil, uma grande autonomia dos prelados seculares, nas dioceses, mantendo a eliminação das ordens monásticas, e sobretudo da crescente influência da Companhia de Jesus; a subordinação do Papa à autoridade do grémio dos fiéis representado pelos concílios, isto é, o regresso à democracia conciliar que vigorara até ao séc. XVI, resultante da electividade dos prelados pelos fiéis, que existira na Cristandade da Alta Idade Média; a defesa da tradição contra as inovações doutrinárias e disciplinares trazidas pelo concílio de Trento. Tal doutrina, que contava muitos adeptos em Portugal, até mesmo entre o clero, e que tinha atrás de si a tradição da política religiosa pombalina, estava, no entanto, em profundo desacordo com a orientação oficial da Igreja, que em 1869 consagrou finalmente a infalibilidade do Papa em matéria dogmática, e que através da encíclica Quanta Cura, e do consecutivo Syllabus, ou compêndio de doutrinas condenadas, marcou de maneira mais nítida a sua oposição ao liberalismo progressivo e à actualização doutrinária.
Herculano nunca repudiou o Catolicismo, mas achou-se automaticamente fora do seio da Igreja. E pela sua luta contra a interferência dos negócios eclesiásticos na esfera civil, contra a reintrodução das ordens religiosas, contra os Lazaristas e Jesuítas, e pela defesa do casamento civil, veio a tornar-se na sua época o mais influente crítico do clero reaccionário de Portugal.
Ao mesmo tempo que isto se dava, penetravam em Portugal correntes ideológicas mais radicais, positivistas ou hegelianas, incluindo a crítica do sentimento religioso por Feuerbach e as dos textos bíblicos por Renan. Herculano nunca aderiu a estas novas correntes, e mesmo quando foi consultado a propósito da arbitrária proibição das Conferências do Casino não deixou de se situar na posição de um católico "legítimo" e antiultramontano. Praticamente, encontrou-se no campo da defesa da liberdade de pensamento ao lado da geração que se lhe seguiu, mas fundamentando-se em pressupostos completamente diversos dos que norteavam aquela.
O mesmo sucedeu com respeito às suas ideias políticas e sociais: a geração de 70 coincidiu com Herculano na sua crítica ao funcionamento das instituições representativas em Portugal, e na tese de que elas estavam servindo uma adulteração da realidade nacional em proveito de oligarquias. Mas, sendo ambos, em relação a este estado de coisas, críticos declarados, Herculano era-o em nome de um liberalismo cuja essência era a autonomia individual, e os representantes da geração mais jovem (em grande parte, seus discípulos) em nome do socialismo utópico. Havia, no entanto, entre eles certas outras afinidades: assim, o regime de grande autonomia municipal, sonhado por Herculano, tendia tanto pelo anarquismo como a federação de produtores que Antero ainda em 1871 preconizava, por inspiração de Proudhon. O documento porventura mais expressivo da ideologia liberal de Herculano é o seu estudo sobre a propriedade literária, onde, nega, em nome do direito de propriedade (que supõe fundado no trabalho), o direito do autor ao exclusivo editorial das suas obras, visto que a impressão destas, segundo ele, é produto do trabalho, não apenas do autor, mas de todos os trabalhadores do livro que concorrem para a edição, e visto que a propriedade se exerceria apenas sobre objectos materiais e nunca sobre os espirituais; além de que esse direito favorecia sobretudo os autores franceses traduzidos.

Em resumo, pode afirmar-se que Herculano foi, na sua obra polémica e doutrinal, o mais legítimo representante da teoria jurídica, económica e social do Liberalismo, embora, apesar disso, ou até talvez por isso mesmo, se encontrasse em luta com as instituições que no nosso país vieram a resultar da instauração do novo regime.
Algumas das melhores qualidades literárias de Herculano ressaltam nos seus artigos e obras polémicas, que o consagram como o nosso maior polemista romântico: a sua intensa emotividade parece realizar-se no ardor da luta; o gosto do sarcasmo dá contundência à sua prosa; a ênfase amplificadora confere dignidade aos problemas debatidos, elevando-os sempre à categoria de grandes causas, mesmo quando se trata de questões de origem pessoal, como foi a intriga tecida à volta da nomeação de um funcionário incompatibilizado com Herculano para a direcção da Torre do Tombo, que originou as páginas solenes da Carta à Academia . Com esta emotividade sobreaquecida e engrandecedora, que se manifesta também no ritmo versicular e no vocabulário solene, conjuga-se uma ordenação clara dos argumentos, a precisão (em geral idealizante) dos conceitos e das teses que defendia ou atacava.


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.




Publicada por Helena Maria em 05:30
Etiquetas: Alexandre Herculano
11 de Out de 2009
O historiador
Não poderemos compreender a obra historiográfica de Herculano se a não ligarmos às condições do ambiente, mais especificamente aos problemas sociais e políticos levantados pela instauração do Liberalismo em Portugal.

O primeiro estudo histórico de certo fôlego empreendido por Herculano são os Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e Forais, reproduzido no vol. VI dos Opúsculos e cuja publicação se iniciou n' O Panorama em 1843. No prefácio explica o autor a sua intenção de contribuir para o esclarecimento da questão, então muito debatida, da abolição dos direitos senhoriais pela chamada Lei dos Forais de Mouzinho, que representa de facto a abolição da velha sociedade portuguesa. Herculano, analisando a sociedade portuguesa medieval, denunciava a injusta origem do sistema fiscal pelo qual a nobreza e o clero exploravam a burguesia e o trabalhador, inferindo implicitamente a justiça da lei de Mouzinho que eliminara essa situação. O processo do passado aparece, portanto, a justificar a legislação liberal.
Neste estudo, Herculano anunciava a próxima publicação de uma obra intitulada Estudos sobre a Idade Média Portuguesa . Esta obra veio efectivamente a lume, mas com outro título e outra concepção: é a História de Portugal, cujo primeiro volume saiu em 1846. A ideia inicial de Herculano parece ter sido a de uma história da classe média portuguesa, à maneira da Histoire du Tiers État de Thierry; mas, obrigado a rever a história política geral, inçada de erros, decidiu-se a acrescentar ao primitivo plano a narrativa dos acontecimentos políticos e a análise das instituições.

A historiografia portuguesa, segundo Herculano, reduzira-se a uma "biografia dos indivíduos eminentes". O projecto revolucionário de Herculano é anunciado, desde 1842, nas Cartas sobre a História de Portugal, escritas sob a influência de Thierry (Lettres sur l'histoire de France):

"A história pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore. Quem quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é olhar para um dos lados, contar-lhe os veios de pedra, medir-lhe a altura por palmos, polegadas e linhas". E um pouco adiante: "As opiniões, os costumes, os usos, todos os modos, enfim, do existir da época em que viveu, toda essa existência complexa de muitos milhares de homens, a que a se chama nação, devia ter uma influência imensa, absoluta, naquela existência individual do homem ilustre, que o historiador acreditou poder fazer-se conhecer com os simples extractos de quatro crónicas, cosidos com bom ou mau estilo às respectivas certidões de baptismo, de casamento e de óbito" (Carta IV).

Na realidade, a História de Portugal de Alexandre Herculano termina em 1279, com a morte de D. Afonso III, o que constituía a sua primeira parte, e é fundamentalmente uma história político-militar cujos capítulos correspondem a D. Henrique e aos cinco primeiros reis, a que se seguem dois livros (o VII e o VIII), que tratam fundamentalmente dos municípios . Estes últimos teriam uma origem romana, tese que briga afinal com a teoria romântica das origens medievais das modernas nações europeias, e que seria em 1943 inteiramente refutada, quanto à Península, por Sánchez Albornoz. Nesta primeira tentativa de uma "história crítica" do país, para o qual se recusa logo em Advertência em "pedir indulgência aos homens competentes", o historiador romântico debate-se entre o seu culto nacionalista do "indivíduo moral chamado povo ou nação" e o apreço pelos fundadores afonsinos, de origem burgonhesa, que promoveram a nova nacionalidade sem qualquer precedente, visto que a continuidade dos Lusitanos só muito posteriormente (meados do século XVI) seria proclamada, e Herculano dedica parte do capítulo I da Introdução a contestá-la.
A História de Portugal foi sobretudo uma obra precursora, e em breve ultrapassada no aspecto social e cultural, que sobretudo visava. Concebida como exaltação do movimento concelhio, precursor de uma "classe média" rural e fabril que deveria afirmar-se depois da vitória liberal contra o capitalismo fontista dos bancos e do "desenvolvimento material" (e contra o "socialismo" e outros defensores do "vulgacho", cuja importância exagerou com o Setembrismo) - viu no municipalismo a aplicação local da poupança, e no seu catolicismo laicista e antipapal, no ensino técnico-agrícola, numa defesa sem exército permanente as melhores garantias da revolução liberal por que se batera com armas. O projecto desta História de Portugal realizou-se em poucos anos, desde 1942. Tinha como pequena base de apoio os trabalhos franceses e alemães, os esforços de Frei António Brandão na Monarquia Lusitana, de sócios da Academia Real das Ciências (especialmente João Pinto Ribeiro), os primeiros volumes das Instituições do Direito Civil Português, 10 vols., 1842-53, do Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal [...], 2 vols., de M. A. Coelho da Rocha, 1848, e os serviços de outros arquivistas de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, a que também ficou devendo o início dos Portugaliae Monumenta Historica .

Empenhado em eliminar as "cãs da mentira" geralmente tidas como "veneráveis" na nossa história (o milagre de Ourique, as cortes de Lamego, uma identificação apressada com os Lusitanos), o que fez com admirável coragem, Herculano não podia prever o surto da pré-história, da arqueologia, da geografia histórica, da demografia, que concretizariam o problema que pôs em termos absolutos: "índole" do povo e a vontade dos chefes, cobertos por uma visão providencialista, que ocasionalmente dá um jeito dialéctico para compreensão positiva do "absolutismo", entre o seu início no século XV e a revolução liberal. O absolutismo teria servido para rasoirar certas desigualdades da democracia municipal, ou para a expansão dos séculos XV, XVI e XVII - que, em geral, detesta. Não chegou a estudar a historiografia intelectual, moral, os costumes, os movimentos económicos e sociais, embora nas suas ficções nos deixasse vários quadros pitorescos dos séculos XIV e XV, e por isso os seus capítulos sobre o municipalismo nos parecem ultrapassados. Por ignorância da língua árabe, caiu em numerosos erros de transcrição onomástica, e algumas datas conjecturais parecem erradas. Mas defendeu contra Ribeiro dos Santos e outros celtistas o primado das origens latinas do Português.
A História de Portugal pretende ser uma história das instituições, preparada com uma visão laica dos factos políticos. Neste ponto convergem, não só a influência já referida da historiografia francesa, mas também a da escola histórica de Savigny, que concebe as instituições sociais como algo de orgânico e com existência própria, independente da dos indivíduos. Esse organismo e a "índole" das provas ganham por vezes feições providencialistas. Os municípios eram para Herculano (que neste ponto também segue Thierry) as células vivas da nova classe média que, após lutas seculares com a nobreza e o clero, subira ao poder graças à revolução liberal. Os forais constituiriam o grande livro burguês de linhagens.
Os limites que hoje sentimos na História de Portugal são de duas ordens. Por um lado, a insuficiente informação relativa às estruturas económicas e tecnológicas, daí resultando que as lutas sociais nos apareçam sob um aspecto abstractamente político e jurídico. Esta limitação encontra-se aliás em toda a historiografia romântica.

Seria fácil também apontar nas obras históricas de Herculano certo providencialismo histórico e certo moralismo sumário, que encontrámos já na concepção dos seus romances. A personalidade de Herculano lateja, naturalmente, de conflitos íntimos; embora as suas crenças poéticas nem sempre interfiram com o senso de certas realidades, que vimos ser nele muito vivo.
No entanto o que mais escandalizou os contemporâneos de Herculano foi a refutação de certos mitos históricos, especialmente o da batalha de Ourique, em que D. Afonso Henriques teria sido sagrado rei pelo próprio Cristo. Camões cantara esse acontecimento n' Os Lusíadas, os polemistas da Restauração utilizaram-no contra a dinastia filipina, e tornara-se o atestado da origem divina da monarquia portuguesa. Já no séc. XVIII Verney descrê do "milagre". Mas foi a pretexto da sua demolição crítica por Herculano que se desencadeou a luta ideológica entre tradicionalistas e renovadores, numa violenta polémica, em que o clero desempenhou um papel muito importante, não só na imprensa, mas no próprio púlpito de algumas igrejas. Herculano aceitou o desafio e assumiu o papel de líder progressista que lhe atribuíam os adversários. Em vários folhetos de polémica denunciou a campanha que lhe era movida como um ataque clerical "ultramontano" contra o seu liberalismo, romanticamente católico. Nesta perspectiva escreveu a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 1854-59, que pode considerar-se como prolongamento daquela polémica.
Esta obra tem o propósito de mostrar o papel "do fanatismo e da hipocrisia" na introdução do Tribunal do Santo Ofício, acompanhando pormenorizadamente a correspondência entre o rei de Portugal, os seus embaixadores e a corte pontifícia acerca do assunto. Não se pode contestar a veracidade dos factos, por vezes surpreendentes, relatados neste livro; documentalmente a obra deve considerar-se intacta, e a sua leitura ainda hoje é indispensável. Mas não há dúvida de que fica muito abaixo do nível da História de Portugal : é o simples relato de uma intriga de alguns indivíduos sem escrúpulos, em que a apreciação moral dos caracteres predomina sobre uma objectiva sociologia. Segundo uma tese tipicamente iluminista, o fanatismo de D. João III, a hipocrisia de alguns prelados e príncipes da Igreja, que ocupam o primeiro plano, aparecem como forças originárias dos factos; e só secundariamente, como em pano de fundo, se desenha o seu contexto social.

Para completa apreciação da obra de Herculano como historiador, convém tomar em consideração alguns outros estudos seus, como as Cartas sobre a História de Portugal, os Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e Forais, ambos já citados, os Estudos sobre o Casamento Civil, que contêm matéria histórica, o estudo sobre o Estado das Classes Servas na Península e o estudo sobre o Feudalismo, ambos publicados também nos Opúsculos, onde saíram ainda ensaios históricos menores, como os referentes à batalha de Ourique.


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

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