quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Biografia e drama espiritual de Antero

Antero de Quental aparece-nos como o principal mentor da Geração de 70 nas suas origens, e simultaneamente como poeta, polemista, doutrinário e testemunha epistolográfica. Mas, ao longo da sua evolução, a sua poesia e o seu pensamento traduzem de forma paradigmática um drama pessoal (e geracional) que resulta, entre outras coisas, de um desajustamento entre certa filosofia progressista e humanitarista europeia dos anos 50 e 60 e a situação histórica, sobretudo nas condições sociais portuguesas. Daqui resultou a biografia espiritual talvez mais dramática da literatura portuguesa, de que os textos doutrinais, numerosas cartas e os poemas assinalam a evolução.

Apoiado, talvez, pela educação materna, que se manteve prevalecente até finais da adolescência e ainda em seguida iria perdurar de um modo menos visível, houve sempre nele um fundo de religiosidade tradicional, condizente com o velho morgadio açoriano que herdou e constituiu a estável, embora modesta, base material da sua vida; entre os seus antepassados conta-se pelo menos um asceta, o padre Bartolomeu do Quental, organizador, como vimos, da Congregação do Oratório no nosso país. Um dos mais veementes apelos do seu temperamento, quer na fase inicial quer na fase final da sua vida literária, foi o da santidade mística, que se transmudou, durante a fase mais intensa e combativa, numa devoção dramática, pela voluntariedade externa e interna, a um sentido democrático-social de vida, sentido todo imanente a uma concepção evolucionista do mundo físico e da sociedade humana. Tal combatividade progressista existia também na tradição familiar, pois um dos avós, companheiro de Bocage, sofrera perseguições e prisões absolutistas e fora mais tarde deputado às Constituintes; e, além de um primo, o próprio pai vivera no exílio, donde regressara com os 7500 bravos de Mindelo.
Em 1858, com 16 anos, inscreve-se na Universidade, depois de três anos de estudos preparatórios em Coimbra; data do ano seguinte a sua primeira poesia mencionada, feita sob inspiração de um poema religioso de Herculano que já o impressionara desde os 10 anos. Herculano será um dos mais importantes mentores da sua carreira; nas cartas que durante anos escreverá a Oliveira Martins, as expressões sinónimas "o Herculano", "o Velho", "o Mestre" soam com insistência e num tom de simpatia e intimidade filial. Mas nos primeiros tempos universitários não é ainda a filosofia da história portuguesa que o interessa; é o sentido (herculaniano) de uma grandeza imensurável para além da vida comum, a transfiguração da paisagem a um sopro tempestuoso do Eterno que bafeja no Homem uma correspondente grandeza de atitudes morais. Este senso da grandeza cósmica e moral vazar-se-á, vê-lo-emos, em moldes hegelianos e humanitaristas. Mas, para já, e no prolongamento da sua educação tradicionalista, abrem-lhe caminho à admiração e imitação em verso de Lamartine e de certos poemas do romantismo português nos anos 50, como O Firmamento, de Soares de Passos.
Entretanto, ao longo de um aproveitamento escolar sem nada digno de nota até à formatura, evolui desde contestações meramente praxistas de um temperamento irrequieto, pelas quais chegou a ser castigado, a atitudes cada vez mais significativamente combativas. Dentro de um numeroso grupo estudantil a que pertence, a Traça, organizou uma espécie de directório, a Sociedade do Raio, para orientar um movimento contra o foro académico e um reitor que o personificava; numa sessão destinada a homenagear o príncipe herdeiro da Itália, saúda-o, em nome da Academia, não como representante da Casa de Sabóia, mas como filho de um dos libertadores da sua pátria, amigo de Garibaldi; e para reagir contra certas medidas de repressão aos movimentos académicos, promove em 1864 a famosa "Rolinada", protesto de grande parte da Briosa sob a forma de um êxodo para o Porto, "berço da liberdade portuguesa". No campo ideológico e especialmente literário, esta evolução coincide com manifestações de entusiasmo em torno das lutas progressistas europeias: movimentos de emancipação e unificação nacional como os da Polónia e da Itália, a resistência crescente a Napoleão III, cujo mais célebre arauto, Vítor Hugo, já encontrara ecos portugueses, especialmente em Mendes Leal, nos poemas motivados pelo caso da barca "Charles et George", que Antero declamou numa reunião, e em certos esquecidos poetas portuenses, que parecem tê-lo influenciado quando da "Rolinada". Sob o ponto de vista formal, foi então decisiva a convivência com João de Deus, que, segundo afirma, lhe teria revelado "o soneto como ele é, como deve ser".
"Varrida num instante" a sua educação tradicionalista, como dirá mais tarde numa carta autobiográfica ao seu tradutor alemão W. Storck, passou, como outros companheiros, por um ideário irreligioso, liberal-tolerantista, do Progresso, provavelmente inspirado por Vítor Hugo e Pelletan, panfletário e inimigo ideológico do Segundo Império, cujas concepções esquematicamente racionalistas acerca da morte da música e da poesia ainda conservará mais tarde, mas que entretanto aborrecerá tanto como ao positivismo seu afim; e, quanto aos problemas portugueses, parece ter então feito caminho do municipalismo e antiultramontanismo de Herculano até às doutrinas de Henriques Nogueira, que o abeiram de Proudhon. Mas as poesias que escreve até 1864 e hoje figuram, quer na primeira edição dos Sonetos, 1861, e na Beatrice, 1863, quer nas Primaveras Românticas, só editadas em 1875, e nas três edições sucessivamente aumentadas e póstumas de Raios de Extinta Luz, documentam, como veremos adiante, uma grande multiplicidade de ideias e preocupações desde cerca dos seus 20 anos.

Quando, por fins de 1863, conclui as Odes Modernas, que apenas serão publicadas em 1865, depois da sua formatura em Direito, Antero assimilara aquele conjunto de influências atrás apontadas na sua geração. A atitude doutrinária deste livro contrasta com a da anterior poesia portuguesa, incluindo a do Romantismo humanitarista e protestativo até então conhecido, apresentando-se como bem explicitamente revolucionária. Com efeito, das Odes está banido o sentimentalismo erótico, a religiosidade lírica lamartiniana pretextada na paisagem - a favor, não de uma vaga compaixão social, mas de um corpo de doutrina; ao cristianismo dos primeiros românticos opõe-se um panteísmo em que, sob a inspiração de Michelet (ecoando Vico e Herder, e completado por Proudhon e pela Vida de Jesus de Renan, 1863, tradução portuguesa 1864), os mitos e religiões, incluindo a de Cristo, aparecem como fases poéticas ultrapassadas na vasta epopeia da Humanidade, fases em que ela ainda não dominava a fatalidade das leis naturais para, controlando-as, instaurar a lei da sua própria liberdade. Esta lei da liberdade era a da Justiça demandada pela Revolução proudhoniana, e era a Ideia hegeliana, que, não deixando de ser transcendente e eterna, se fizera, contudo, também imanente à evolução natural, depois à história inconsciente e, por fim, imanente à própria consciência dos homens. Deve frisar-se que exposições francesas do hegelianismo lançam então raízes inextirpáveis em Antero. Ele nunca deixará de ver a realidade como o desenvolvimento da Ideia, ou plano imanente, através da autonegação evolutiva por tese, antítese e síntese, que, segundo Proudhon, corresponderiam a séries qualitativamente diferentes de fenómenos. Segundo este idealismo objectivo que ele abraça, a história realiza a Ideia, e um papel decisivo cabe aos mentores intelectuais, "reveladores santos da Ideia", os seus semeadores no "campo" ou "chão" fecundo da Humanidade.
Mas durante todo o período mais combativo de Antero, o de 1863-75, aquele em que domina a tendência designada por António Sérgio como apolínea ou diurna (em oposição à tendência romântica ou nocturna, sempre aliás coexistente com essoutra), o seu hegelianismo apresenta já ambiguidades prenunciadoras de atitudes posteriores. De facto, o hegelianismo anteriano foi bebido, não directamente, mas em expositores ou intérpretes como Vera, Rémusat e o próprio Proudhon. É provavelmente de Vera que Antero deriva a acentuação daquilo que na Ideia de Hegel ainda há de virtualmente teológico: o seu carácter, no fundo deísta, de "universal espírito", imanente à natureza e à história, e cuja realização seria, portanto, não (como em Hegel) a das leis objectivas, naturais (depois concebidas pelo espírito humano e estatizadas), e sim este mesmo espírito humano, verdadeiro templo da Justiça proudhoniana, co-eterna, por assim dizer, à Ideia; mas, em muitos seus textos, ocorrem, quer a concepção tradicional de um Deus transcendente, quer a da sua pura imanência ao Homem como impulso para um Absoluto ou um Bem moral (pensamento típico de E. Vacherot). Por outro lado, ao longo da sua evolução de 1865 a 1890, Antero, ora, na sequência de uma esquemática concepção iluminista (que, por Vico, chega a Hegel e Pelletan), profetiza o fim próximo da poesia, pretenso resíduo da mentalidade primitiva, e da música, pretensamente solidária do individualismo romântico; ora faz a contraditória e bem pouco hegeliana reivindicação de um papel independente para o sentimento subjectivo, como absolutamente irredutível a conceito; ora exalta o extremismo irreconciliável da tese e da antítese, de cuja luta sem quartel, unicamente, viria o progresso (justificando a esse título a encíclica antiliberal Quanta Cura); ora, proudhonianamente, parece conceber a síntese como sendo a conciliação das contradições fundamentais, em vez de ver nela a negação directa da última negação consumada numa sequência de negações sucessivas. Veremos adiante, a propósito da poesia, as implicações literariamente mais concretizadas dos conflitos ideológicos de Antero.
Já no capítulo anterior nos referimos à Questão Coimbrã e às Conferências Democráticas, em que Antero desempenhou o papel de protagonista. Registemos aqui apenas, para evidenciar os conflitos através dos quais se vai processando o seu drama espiritual, que, depois de concluído o curso e travada a batalha de seis meses do Bom Senso e Bom Gosto, cujo melhor e ainda hoje mais vivo documento foi o seu folheto sobre A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, depois de disperso o seu curso coimbrão, o jovem poeta e polemista regressa por um tempo ao solar açoriano e estremece com este sentimento, esta "coisa nova: a consciência de proprietário"; e que, pouco depois, em seguida a um breve tirocínio numa tipografia lisboeta, vai a Paris, para passar pela experiência dura de operário tipógrafo (1866-68). Cedo, porém, se malogra o esforço heróico da adaptação do filho-família micaelense a um trabalho e a um ambiente para que não estava intimamente preparado. Há então um regresso desalentado e secreto à quinta minhota do amigo Alberto Sampaio, depois a Ponta Delgada, uma viagem à América. Até que, instalando-se em Lisboa, no ambiente exaltado de uma crise dinástica espanhola, da queda de Napoleão III, da Comuna de Paris, rodeado por velhos companheiros coimbrãos e outros moços abertos às novas luzes, surge aquilo a que, por analogia com um grupo do romantismo progressista francês, se chamou, depois, o Cenáculo, organizador das Conferências Democráticas .
Visto terem sido atrás versados, em capítulo à parte, as origens, as intenções, o desenrolar e a suspensão das Conferências, limitemo-nos a salientar aqui a filiação herculaniana da tese de Antero sobre quais teriam sido as Causas da decadência dos povos peninsulares : a Contra-Reforma, o absolutismo régio e a expansão ultramarina, que é como quem fala numa só causa complexiva, a estrutura antidemocrática das nações ibéricas desde meados do século XV com vista à conquista e exploração de terras no além-mar. Esta filosofia da história peninsular já, porém, aponta, como remédio, não a proposta municipalista pequeno-burguesa e basicamente agrária de Herculano, mas a utopia proudhoniana de um princípio federalista, que se estenderia desde um largo campo político (federação livre de repúblicas peninsulares) até à organização económica (federações de associações dos produtores). Contudo, Antero sentia-se discípulo do grande historiador, inclusivamente da sua liberalização romântica do Cristianismo, ao reivindicar, por seu turno, nas Odes, que "a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno". E do mesmo modo que o Mestre participara sempre nas lutas decisivas da sua geração, Antero, não apenas colabora na imprensa republicana sindicalista e publica opúsculos de propaganda para as organizações operárias, como, ligado a José Fontana, empregado livreiro, organiza a secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores (1872) e concorre mais tarde às urnas como candidato do Partido Socialista, fundado em 1876. É de notar que Antero e Fontana não aderem no fundo à linha marxista, prevalecente na I Internacional entre 1872 e a sua extinção em 1876, mas a uma sua latente divergência anarquista, de tradição proudhoniana e representada por Bakounine (n. 1876); e ainda que, no âmbito nacional, Antero se opõe desde cedo, e com veemência, aos republicanos, que se constituem em partido em 1876.

No entanto, toda esta actividade constituía uma violência moral, com laivos de heroísmo, exercida sobre um outro sentimento mais antigo e radicado de vida, ou, para usar terminologia sua, outro ideal de santidade. E, na verdade, quer certas confidências em cartas, quer certas poesias "nocturnas" desta mesma época (tal o soneto À Virgem Santíssima), quer a interpretação que de tudo fará mais tarde em carta autobiográfica ao seu tradutor alemão, revelam os antagonismos íntimos em que se debate. Acresce que a estabilização política da monarquia espanhola, da III República francesa, da Itália e Alemanha unificadas, as repressões à Internacional, a instauração em Portugal de um estéril rotativismo bipartidário após a crise final da Regeneração e o malogro das primeiras greves extensas do País - tinham fechado perspectivas à linha rectilínea de acção que seguia, deixando apenas esperanças ao republicanismo pequeno-burguês de Teófilo, ou ao "socialismo de cátedra" que, com o seu apoio, Oliveira Martins irá tentar dentro do statu quo político. De modo que um regresso, em 1873, a S. Miguel, quando, por morte do pai, lhe cabe o património dos Quentais, assinala o fim da face solar, entusiástica, em que, sob o signo da Razão, se dizia:

Escuta! é a grande voz das multidões!
..............................
Ergue-te, pois, soldado do futuro,
E dos raios da luz do sonho puro,
Sonhador faze espada de combate!


O seu combate concentrar-se-á na redacção de um Programa dos trabalhos para a geração nova, já começado em 1871, que será destruído antes de terminado. Surge-lhe então, pelos começos de 1874, uma doença minaz com cujo diagnóstico e terapêutica nenhum médico parece ter atinado, nem mesmo Charcot, que foi consultar a Paris, doença ainda postumamente discutida por uma sumidade nacional como Sousa Martins, pela dissertação em Medicina de Jaime Cortesão, por Miller Guerra e por psiquiatras e psicanalistas. Obrigado a manter-se o mais possível deitado de costas, enfraquecido por incapacidade de alimentação substancial, muito irritável, moralmente abalado pela ineficácia dos tratamentos a que se sujeita em Portugal e em França, e ainda por complicações sentimentais intensas, que, aliás, mal afloram à obra poética, a sua filosofia evolui a partir de então num sentido pessimista. Isso coincide aliás com a ideologia europeia em voga, pondo, por isso mesmo, o delicado problema de determinar qual a importância relativa na interacção dos factores psíquicos, filosóficos e históricos desta fase anteriana.
Já desde 1872 se reconhecia dividido entre duas alternativas , dois factores : "Penso como Proudhon, Michelet, como os activos: sinto, imagino e sou como o autor da Imitatio Christi ". Mas a "náusea da realidade", o "desejo do Nirvana" búdico, ou seja, da autonegação pessoal, antes oculto, vai agora tornar-se predominante. Para dar forma filosófica a tal pessimismo, concorre a leitura de divulgadores ou exegetas da mística budista, por então em moda na cultura ocidental, e dos expositores franceses de Schopenhauer e, sobretudo, de E. von Hartmann. De acordo com este último, a Ideia hegeliana (já, como atrás dissemos, interpretada através de Vera num sentido acentuadamente teológico) transforma-se no Inconsciente, mundo de forças psíquicas tenebrosas, indevassáveis, que animaria quer a evolução do mundo material quer os movimentos de cada consciência individual. O panteísmo mantém-se, mas mudando o sinal positivo para negativo: em vez de ser um momento dinâmico da acção vital, a Dor (maiusculada, como a Morte, o Tédio, a Noite, e outras entidades negras da nova mitologia) converte-se em único ente supremamente real, ente que a própria morte individual, a própria extinção da espécie humana não aniquilaria, a menos que, por um prodígio, a Natureza Inconsciente assumisse consciência do seu mesmo mal, e se aniquilasse como vontade de ser; ao ideal do Progresso sucede, portanto, a ânsia do Nirvana búdico, interpretado por Antero como negação da realidade física; ao culto da Razão diurna e activa, o da Noite pacificante do Não-Ser, que se identifica com o Ser absoluto; a Luz do "claro Sol, amigo dos heróis", transmuda-se em "símbolo da mentira universal" ou da "universal traição".
A partir de 1880, a onda pessimista está a findar, depois de tanta ênfase posta numa filosofia tão débil, quase mitológica. A função efectivamente exercida por essa onda consistiu em dar evidência a uma realidade isolada entre tão grandes destroços, a realidade do sentimento, que Antero desde cedo antepunha à Ideia de Hegel e à Justiça de Proudhon, como base de uma ética de contornos sociais muito vagos. Essa realidade, uma vez bem isolada, servirá de ponto de partida para um novo idealismo, já não pronunciadamente objectivo como o de Hegel, mas de tonalidade subjectiva, como o da dialéctica de Fichte, de resto já presente na interpretação que Vera lhe dera do hegelianismo. Após duas candidaturas meramente simbólicas a deputado socialista, em 1876 e 1880, Antero, retirado em Vila do Conde numa vida de recolhimento, leitura e meditação, convive apenas, e de longe a longe, com raros amigos, sobretudo Oliveira Martins, então residente no Porto. Anima este último como se ele fosse um seu alter-ego ainda empenhado na vida pública, uma espécie de condiscípulo na actualização de Herculano, mas através de compromissos, pactos, transigências que veremos e a que "o Velho" já não poderia servir de paradigma.
As cartas que desde há alguns anos vinha escrevendo a Oliveira Martins constituem, de facto, uma documentação quase tão preciosa como seria um seu diário íntimo, acerca da sua trajectória espiritual: várias vezes polemiza com o amigo para o persuadir da necessidade histórica, pelo menos "ideal", de uma fase de Transcendentalismo, entre Sócrates e o Cristianismo medieval. É também significativo que a sua discussão se encaminhe sempre, quanto a isso, no sentido de valorizar essa fase transcendentalista desde o politeísmo até ao imanentismo, entendendo este, não como subordinação progressiva do mundo à acção social humana, mas como afirmação da superioridade do eu moral sobre os deuses e a natureza. Além da mitologia, também o "naturalismo" seria, como forma histórica de mentalidade, anterior, inferior, portanto, ao idealismo subjectivo. Deste modo, através da sua fase pessimista, cujo carácter transitório e instrumental sempre vincou mais tarde, é efectivamente o materialismo, quer dizer, a tese do primado da realidade objectivável sobre a consciência humana (ou outra), aquilo que, sob a designação de "naturalismo", constitui o verdadeiro alvo da sua ofensiva principal. Na arena ideológica mais próxima, a dos modestos doutrinários portugueses, o adversário imediato era, porém, o positivismo, que, apesar da sua neutralidade quanto à questão de saber se o espiritual resulta da transformação do material ou vice-versa, se aparentava com o "naturalismo" em valorizar as conquistas materiais do progresso, em encarecer o ponto de vista sociológico, e, no nosso país, em se ligar com um amplo movimento pequeno-burguês: a propaganda republicana.

De facto, nas cartas a Oliveira Martins, e noutras, a admiração por Herculano é tão insistente como o desprezo por Teófilo Braga (personagem aliás de muito menor finura), desprezo que abrange a movimentação do Partido Republicano, nomeadamente, em 1880, pelas Comemorações Camonianas, expressão eficaz da autoconfiança e capacidade organizadora dos republicanos. Nestas condições, Antero arrima-se à combatividade de Oliveira Martins para não deixar soçobrar aquele mínimo de interesse pela coisa pública que era necessário à estrutura do seu carácter; e a extraordinária lucidez com que vê os perigos à espreita desse carácter revela que a luta entre os dois Anteros continua, embora travando-se num terreno da retaguarda, o da sua simples auto-sinceridade.
Mesmo em Maio de 1874, pela altura em que, com a doença, se iniciava a fase do pessimismo filosófico, já Antero reconhecia a sua própria divisão interna, a "barreira intransponível entre a intenção e a deliberação", e se confessava devedor ao amigo pelo senso que mantinha dos problemas humanos: "Chamou-me à realidade viva, humanamente natural, de que por um insensível e contínuo desvio o meu temperamento místico tende sempre a afastar-se, em não havendo influências externas que me chamem à razão - e V. é para mim essa razão... como direi, a boa razão, numa palavra, positiva, real, justa"; de outro modo a solidão levá-lo-ia para "uma vida ensimesmada, toda interior e subjectiva, e por aí exclusiva e viciosa, levando ao esquecimento da razão positiva e do próprio bom senso, apagado num nevoeiro de abstracção e sonho, onde há perigo de naufragar, juntamente com a vontade e amor das coisas naturais, a própria dignidade do homem". E quando já namorava o budismo e tendia para o "misticismo" (Julho de 1873), ainda reconhecia: "O absoluto, para estar racionalmente na vida humana, deve ser praticado e não contemplado : quero dizer que, em vez de nos imobilizarmos no esforço contraditório de realizarmos em nós o absoluto (que não tem realidade), o que devemos é praticar a vida como quem sabe que cada acto e momento dela é um acto e momento do absoluto"

Esta lucidez em pouco mais se traduz, efectivamente, do que em exortações ao amigo, de quem se contentará com ser a "testemunha consolada", quando muito o filósofo tutelar. No capítulo seguinte veremos em que consistiu a carrreira pública de Oliveira Martins. Basta, por agora, notar que essa carreira evolui no sentido de uma cada vez menor confiança em camadas populares, abandonando primeiro o apoio das organizações operárias pela manobra política junto dos dois partidos monárquicos "rotativistas", e abandonando mais tarde o jogo parlamentar e partidário por uma manobra de influência pessoal junto do futuro rei D. Carlos, através do grupo meio literário meio áulico e dandy dos Vencidos da Vida, em que Antero participou, ao lado de Eça, Ramalho e Junqueiro. O Ultimato de 1890, precedido pelo início do novo reinado e logo seguido de uma grave crise económica e financeira com que Oliveira Martins contava, de longe, como ensejo para fazer vingar no poder o seu programa de reformas, traz o desengano a tais esperanças, aparentemente tão realistas nas suas transigências tácticas: Oliveira Martins previa agora uma ditadura de apoio régio (cesarismo) e uma desapiedada colonização angolana justificada em termos de uma espécie de darwinismo racial ariano. Mas Antero não chegou a conhecer em toda a extensão o desengano do amigo.
No seu retiro, onde se entregava à educação de duas órfãs de um antigo companheiro de Coimbra, Germano Meireles, à leitura e a um esforço meditativo destinado a equilibrar num sistema filosófico as solicitações ainda em luta no seu espírito - nesse retiro acede ainda a presidir à Liga Patriótica do Norte, resultante da vasta comoção patriótica desencadeada pelo Ultimato e empenhada em refazer toda a vida portuguesa na base de um concerto de boas vontades progressivas. No entanto, talvez desgostado com o maior dinamismo revelado no movimento pelos republicanos, demite-se, apressando a dissolução da Liga, e cai no seu mais desesperado pessimismo nacional.
Decide em seguida regressar a S. Miguel, para que as suas educandas, terminados os estudos escolares, possam conviver em família com outras pessoas, além de um inexperiente tutor celibatário. Mas desencadeiam-se incompatibilidades caseiras e, com elas, com toda uma série de factores imponderáveis, agrava-se de súbito o mal-estar físico e psíquico. Mata-se em 11 de Setembro de 1891. Era a falência, como armadura moral, da tão apregoada doutrina "mística", exposta pouco antes para a Revista de Portugal dirigida por Eça de Queirós, naquilo que passaria a ser o seu testamento filosófico: o ensaio de interpretação e crítica às Tendências gerais da filosofia na segunda metade do séc. XIX .
A estrutura ideológica deste ensaio tem uma grande importância para a história da cultura portuguesa, porque, apesar de combinar, sem extraordinária originalidade, inspirações bem reconhecíveis da filosofia europeia desde Leibniz aos neokantianos, constitui a mais reflectida expressão de uma crise que se abria, e que não pôde ser vencida ao nível daquela experiência que se encetou na fase ascendente da Geração de 70. No terreno especificamente literário, poderiam apontar-se em toda a ficção contemporânea e posterior a esse ensaio as mesmas contradições irresolvidas que nele se acusam.
A maneira como Antero formula os problemas centrais que considera como seus e da sua época é ainda, em certo sentido, hegeliana. É-o, em primeiro lugar, porque (pelo menos no início do ensaio) não pretende que a sua formulação seja definitiva e intemporalmente válida; em segundo lugar, porque procura sobretudo determinar as contradições doutrinárias básicas da sua época (as teses e as antíteses), a fim de as superar numa síntese que servisse para o seu governo.
Segundo Antero, a tese ideológica, o ponto de partida reflexivo da sua época, seria aquilo que designa, no correr da sua larga epistolografia, como naturalismo científico (incluindo, como caso especial, e não de todo consequente, o positivismo). As características desse naturalismo, desse pensar cientista, seriam o mecanismo (explicação do superior, nomeadamente o fenómeno psíquico, pelo inferior, nomeadamente as forças e massas mecânicas), o determinismo (causalidade necessária e exterior a cada fenómeno) e o evolucionismo (no sentido spenceriano do termo: a passagem do simples ao complexo, a constante complicação dos fenómenos por acumulação diversificante). Este, em resumo, o "gélido fatalismo soprado pela ciência sobre o coração do homem", esta a visão puramente científica do universo, "que nada nos diz ao coração". Como pode ver-se, Antero responsabiliza a ciência sua contemporânea por um materialismo que poderia ser sugerido pela física newtoniana mas que já então se superara, quer reconhecendo não apenas graus de complicações quantitativas, mas também uma cada vez maior e mais cambiante diversidade de fenómenos com leis próprias e só integráveis dentro de uma génese geral (fenómenos físicos, químicos, biológicos, psíquicos, sociais, como classificação sumária); quer, por isso mesmo, plasticizando o conceito-limite e filosófico de matéria (que já tanto abrangia massa mecânica, como molécula química, campo electromagnético, organização fisiológica, por exemplo).
A tal naturalismo, ou materialismo metafísico, opõe Antero, como antítese, o "facto íntimo", experimental e irredutível da consciência espiritual, cuja característica seria a espontaneidade ou força autónoma (causalidade intrínseca, e não externa, a autodeterminação, o causar-se a si mesma, o existir em si e por si). Uma vez postulado o carácter inerte da matéria, isto é, a sua condição de submetida a uma e a mesma lei para todo o sempre, e, opostamente, postulada a espontaneidade ou autogeração absoluta da força espiritual, a contradição parece irredutível; mas é então que Antero faz intervir, como síntese, um novo postulado, o de que a consciência, o espírito, constituiria a força-tipo, o modelo mais definido desde o qual poderia explicar-se a própria natureza material. A natureza seria, afinal, não inerte, mas autodeterminadora, causa sui, no todo, e, por grau ínfimo que fosse, nas suas partes supostamente mecânicas: o sujeito seria o paradigma explicativo do objecto, o inferior não passaria de o superior sob forma incipiente. Antero conhecia já críticas, de A. A. Cournot e E. Boutroux, ao determinismo da previsibilidade absoluta de Laplace; mas não encara agora as leis científicas (mesmo contingentes) como meios de disponibilidade, ou liberdade humana, à maneira da tradição progressista dialéctica da sua juventude - e sim como ilusões a que sobrepõe a evidência psíquica de outra lei: a lei moral.

O núcleo desta filosofia "dinamista" remonta, na verdade, a Leibniz, que a opusera ao mecanismo cartesiano do seu tempo. Fichte enxertara-a no hegelianismo, e Antero já a bebera tendencialmente em Vera e em Rémusat, durante a fase combativa. Mas vinha agora acomodar-se melhor à sua integração afectiva no mundo contemporâneo português, e reforçar-se pela leitura de expositores como Désiré Nolen, e Friedrich Lange, o primeiro empenhado em reduzir Kant ao espiritualismo leibniziano, e o segundo em contestar todas as formas historicamente conhecidas de materialismo, à base das críticas de Kant. Com efeito, Antero associa o espiritualismo às correntes neokantistas da sua época, porque assim encontra vazão para uma das suas mais constantes tendências, a de salvaguardar a eternidade e santidade herculaniana, proudhoniana, da lei moral. O determinismo, a passividade da natureza seria uma ilusão fenoménica, através da qual irrompia o imperativo categórico do Dever, como testemunho, único, mas irrefutável, de um livre-arbítrio, uma espontaneidade, uma autocriação - a autocriação de um eu absoluto (em linguagem de Fichte-Vera), eu último de todos os eus, eu simultaneamente causa e fim últimos, que cada um de nós poderia atingir pela prática do dever e pela comunhão mística afectiva do Amor ou Bem Supremo, absoluto da santidade, centro unitivo, plenitude do Ser e dos seres, que não conhece morte e que, portanto, só por ingenuidade egoísta ou santidade imperfeita se adiaria post mortem, como faz o cristianismo vulgar.
Não cumpre discutir aqui tal filosofia, que este resumo empobrece, mas salientar apenas o que mais importa à ideologia literariamente dominante de então para cá.


História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.

Nenhum comentário: