quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Frei Luís de Sousa

O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).

A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)

Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:

O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.

Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.


Publicada por Helena Maria em 14:29
Etiquetas: Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa

O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).

A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)

Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:

O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.

Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.


Publicada por Helena Maria em 14:29
Etiquetas: Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa
18 de Abr de 2009
Frei Luís de Sousa

O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-

O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.

Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.

Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa




Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.

Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa






Publicada por Helena Maria em 14:27
Etiquetas: Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa
13 de Abr de 2009
Frei Luís de Sousa



Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.

O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).

Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.

Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.

O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:

– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.

A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.

António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa

Nenhum comentário: